Opinião

Urbanidade crônica

"O final de semana, ao brasileiro, é como a água fresca ao nômade perdido no deserto das obrigações, clamando pelo conforto que lhe distrai qualquer tribulação"
Da Redação
24/09/2025 às 19h43
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Por Thiago T. Canossa

 

Segunda-feira. Dia útil. As pessoas concordes ao sol em harmonia, amanheciam com os ares da integridade requisitada para trabalhar. Como qualquer outro, mais um final de semana deixava suas cinzas queimadas nas ruas e calçadas da cidade. As vias, pintadas ao cenário fosco das antigas vilas destruídas pelo descaso entre as batalhas da guerra, adornavam-se com garrafas secas multicoloridas, subtraídas de suas tampinhas, com bitucas de cigarro queimadas com as marcas dos sulcos de distintos lábios e sacos plásticos sem fim, aos ecos das risadas e das lágrimas que se foram para nunca mais voltar. Certamente, outras viriam a partir da sexta-feira próxima, com outros timbres e motivos, porém não aquelas mesmas, posto que já mortas, levadas pelo vento frio da madrugada.

 

O final de semana, ao brasileiro, é como a água fresca ao nômade perdido no deserto das obrigações, clamando pelo conforto que lhe distrai qualquer tribulação. A rotina, com suas infindáveis repetições ofuscam a mente inquieta, sedenta pela novidade de experiências outras, desencontradas por aí. Essas sim, dignamente transformadoras. Cansava-me o mais do mesmo. Trabalhar por cinco dias ininterruptos, aguardando ansiosamente o deleite do ócio contemplativo é um soco no peito. A rotina é senhora que cativa, sufoca com os laços da necessidade, sem chance à voz surrada que lhe queira questionar.

 

Não sei quem inventou o calendário como tal, com seus dias, meses e semanas, tampouco o motivo normativo de sua imprescindibilidade. Meu primeiro contato com a semana, enquanto conceito, veio-me ainda criança, no pré-maternal.

 

Pregada na parede da sala de aula, uma paleta típica dos pintores, em cujo interior inseriam-se blocos regulares de cores distintas que lhe cobriam a parte superior. Cinco blocos de cores na parte superior e duas na parte inferior. Imagine uma paleta. Essa mesma, instrumento dos antigos artistas plásticos com encaixe perfeito às mãos para suporte.

 

Daquela época, a paleta na parede firmara-se em minha mente como o modelo da semana composta por seus dias. Uma imagem indelével. Em cada cor que lhe sobrepunha, um dia respectivo da semana. Da esquerda à direita, na parte superior: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira e sexta-feira. Em seguida, como um degrau abaixo do último, o sábado e o domingo perfaziam aquele arquétipo. Sem dúvidas, criativo. Não vislumbro a semana de outra forma. Tentei mudar o modelo. Pensar nos dias da semana compostos em forma vertical, horizontal, sem sucesso. A imagem ficou. Se penso na segunda-feira, por exemplo, automaticamente vislumbro aquela porção de tinta no sentido-horário, ascendendo ao domingo.

 

Levantei-me como de costume, no intento de novos rostos, novas palestras de cabeças outras que me proporcionassem algo além do banal e corriqueiro. No fundo, é o natural que se almeje. Por falta de um sentido amplificado das coisas, buscam-se os óbvios nos prazeres da estabilidade líquida, apta a ser bebida, tragada e comida por uma irrequieta e desqualificada vontade de se lambuzar, para ao final, vomitar frivolidades tão somente úteis aos iguais.

 

Há quem viva em buca de motivos pra pensar diferente. São raros e se esquivam desses meios. Cansava-me dos finais de semana nos moldes postos, com risadas vãs que os compõem, a cerveja gelada tão aguardada, que traz felicidade fácil, e, com ela, a ressaca que desgraça a sobriedade cara aos que se deleitam nos prazeres de pensar. Com o tempo, a sobriedade dá os ares com o preço da necessidade.

 

Um belíssimo dia prometia-me o calor típico das horas vindouras, convidando-me a um café fresco na padoca do bairro. Nessa época, morava no centro da cidade, local onde tudo acontecia. As notícias ali chegavam mais frescas, palco dos grandes acontecimentos na história de uma capital. São Paulo é assim. Um emaranhado de experiências ocultas prontas a se relevarem nos lugares mais inesperados. Puxei a cadeira, sentei-me à mesa no lugar onde os garçons inda esforçavam-se por limpar.

 

Naquele cenário, o dia fluía como um relógio cujo maquinário lhe dera ordens prontas ao trabalho ininterrupto, até o fim de suas energias. De forma automática, as pessoas batiam o ponto, trabalhavam. Com o tempo, os detalhes das atribuições perfaziam-se sem qualquer esforço. Nenhuma instrução maior era necessária. Pela janela, pessoas trajadas indo ao trabalho. Mendigos preparavam-se na retórica de uma mísera petição. Novidades mesmo, só nos jornais, comprados na banca da esquina, lidos freneticamente pelo caminho ou naquela padoca mesmo, durante o café. Abri meu exemplar recém-comprado. Na manchete: “Invicto, Corinthians vence o flamengo em partida apertada, com gol de Sócrates”. A ver, nenhuma novidade. A meu ver, frivolidades. Que me importa esse fato ante as potencialidades do universo? Dia e outro alguém ganha, outro perde e vice-versa. Qualquer dia desses, coisas inesperadas acontecem ao arrepio de qualquer vontade. Nada de novo sob o sol. Jornalismo barato pra vender isca no esporte de pescar otários.

 

Ao meu lado, um sujeito toma um banho de café com o tropeço do garçom, que se desculpa, pronto para a bronca do patrão. Quem sabe perca o emprego nessa banalidade, e com isso, se torne outro indigente. Obviamente, nesse caso, torço mais pelo Corinthians que por tamanho descaso. Natural que se erre e se aprume pra melhor. Mas aí: uma quebra na rotina. Um chamado da impermanência. E o bom da vida não está aí? Pra bem ou mal, uma segunda-feira para se lembrar. O que daí vier, mudará os modelos de conduta daquele trabalhador. Uma nova preocupação, ou, no mínimo, uma história pronta pra compartilhar. Ponto de vista.

 

Na esquina, um assalto. Rotina da criminalidade. Rotina dos contribuintes transeuntes, que, sabedores da possibilidade, deixavam os bens portáteis de valor em casa. Com olhar atento, segui o assaltado entre goles de café, o qual, sem maiores preocupações, adentrara à padoca para o desjejum. Esperei que se aproximasse, chameio para à minha mesa se assentar.

 

Ofertei-lhe um copo com água. Negou-me.

 

- Isso é tudo o que eu não preciso.

 

Pediu um chope.

 

Àquela hora? Naquele dia? Impossível. Bebeu como quem ignora as leis dos dias na vida em sociedade.

 

- E há lá, no calendário, dia certo para um boníssimo chope gelado?

 

Não contestei. Cada qual com suas consequências.

 

- Dia ou outro isso me ocorreria. Tinha medo, por óbvio. Mas aconteceu, logo hoje. Quem esperaria? Essas coisas não se planejam. Simplesmente acontecem. Fato da vida. Vou comemorar. Levou-me o relógio. Esse objeto pelo qual se paga caro a nos aprisionar. Antes ele do que eu.

 

Apresentei-me. Contei-lhe sobre as minhas reflexões daquela manhã. Falei-lhe sobre os dias, a paleta da semana, a correria...

 

São Paulo tem essas coisas. Quando menos se espera, vai-se a rotina, ou ao menos se lhe quebra, como o dia ensolarado que, em instantes, vira temporal, sem pedir espaço ou permissão.

 

- Faz o que da vida? – Perguntara-me.

 

- Tudo e nada. Ao tudo em referência, exerço funções públicas junto à Prefeitura Municipal, no atendimento precário aos contribuintes. Mister necessário à minha sobrevivência do qual não consigo escapar. Uma vez empossado no cargo, as vontades maiores se limitam aos sonhos. A rotina se torna um palco da sobrevivência. Quanto ao nada, nas poucas horas vagas, permito-me sair por aí, caminhando a perscrutar os fatos corriqueiros de uma crônica urbanidade que me inspirem a meditar. Afinal, o tempo é o bem mais caro e, o pensamento, a última coisa digna de se conquistar.

 

- Ah, já sei. Você é desses. Bicho grilo. Olha lá se não gosta de trabalhar.

 

Um clima se instalou. Interpretara-me mal, talvez. Não o culpava. Era o típico trabalhador, com pouco tempo disponível para pensar, vivendo os seus dias como um rato, afogando-se oportunamente ao primeiro mal que o encontrar.

 

Em um trago, sorveu o último gole, despediu-se e saiu. Na correria, tropeçara aos pés da mesa alheia sem pedir desculpas. Cuspiu umas palavras sujas e tomou o rumo do seu dia, que mal começara.

 

Com o olhar atento, espreitei sua saída, imaginando ao léu o último ato daquela vida pouco distraída, atenta à rotina, com medo útil de se atrasar. Corria desenfreadamente pela via, atropelada por um carro, talvez também atrasado, rolando ao chão sem tempo a pestanejar. Em instantes, a multidão se aglomerava em torno daquele corpo que de longe via, com o qual há pouco me encontrara, olhando alto ao rogo de algo, despido de tempo sequer pra se confessar. Morreu ali, de pressa remotamente ignorada e inconstante.

 

Olhei ao relógio. As horas seguiam, cumpriam sua obrigação, indiferente a tudo o que acontecia. Lembrei-me da paleta. Até ordem superior contrária, os dias seguiriam infinitamente metrificando as vidas e os fenômenos do planeta.

 

Impermanência.

 

O tempo é cruel aos apressados desatentos.

 

A semana mal começara. Hora ou outra, outro seria, a minha vez, talvez, de bater de cara contra o sorriso frio da morte, batendo o dedo num derradeiro relógio, lembrando-me a marcação do fim da vida:

 

- Desprepare suas coisas. Vamos embora. Deu-se o tempo. Eis sua hora.

 

De pensar, arrepia. Guardei o relógio. Tudo corria. A sexta-feira era longe, pro desespero dos que ignoram a perplexidade dos mais disciplinados monges.

 

Levantei-me, paguei a conta. Seguia meu caminho, de chapéu às mãos a rumo incerto, percorrendo as luzes do momento. Ao tempo, cada milésimo de segundo importa.

 

A rotina é necessária. Por mais que tente, não se lhe escapa. Escolha bem a sua, e sorria, antes que a vida se torne cara.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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