Por Thiago T. Canossa
Dois escritores amigos, parceiros de reflexão e vício de palavra, trocam áudios que se transformam em conversa. Entre risadas, filosofia e literatura, vão desfiando o fio da escrita, essa teia onde o pensamento se descobre no ato de dizer.
— Bom dia, meu amigo. Seguinte: eu tava fuçando nos botões mentais, e espirituais também. E cheguei numa coisa: entre escritores não existe “análise de texto”, do jeito escolar. É outra coisa. Então não vou te “analisar”. Vou usar teu texto como pretexto, por último. Antes, proponho uma metafísica da personalidade escrita.
— Manda.
— Lembro (ou acho que lembro) que foi Wittgenstein… ou Heidegger, sei lá, alguém desses barbados do panteão, que soltou: “a imagem é o espelho do ser”. Vamos fingir que foi dito assim e pronto. Se eu troco “imagem” por “texto”, funciona igual. Texto é veículo, como fotografia: um texto semiótico. A palavra vira imagem dentro da cabeça. Logo, o texto espelha quem a gente é naquele instante histórico, pessoal e social.
— Até aqui, contigo.
— Então vem o ponto: no começo dos teus textos eu via o leitor de filosofia falando alto. Linguagem objetiva, formal, mira de jornal, público mais afiado. Elegante, culto, admirável, tua memória de citações me humilha. Eu, sem essa máquina de lembrar, fugi pra literatura.
— (risos) Vai, confessa: você me acha quadrado.
— Eu te achei transitando. Nesse último texto senti ares mais literários. Talvez seja um momento teu. Talvez sempre esteve ali e agora resolveu sair à luz. De qualquer modo, curti. Se for transição, abraça. Comigo foi assim: eu era da poesia, depois quis ir pra prosa, odiei a viagem, insisti, errei, reescrevi, até virar pele. Escrita é metamorfose. O estilo acompanha nossas mudanças, é o espelho se ajustando.
— E a escola mete o cabresto, né?
— Exato. A formação de linguagem no Brasil é rígida: “norma, norma, norma.” Aí a gente desaprende a ousar. Literatura, como arte, exige desapego de estrutura. Na filosofia, na ciência, no direito (nossa casa), a expressão tem que ser concatenada. Petição não admite pirueta. A literatura, sim. Ela reabre a cabeça pra liberdade de comunicação: questiona regra social, jurídica, até ortográfica, quando precisa.
— E como isso desce pro texto?
— Leitura e prática. Eu comecei na poesia épica (Homero, Virgílio). Depois fui desossando. A linguística me ajudou: não é normativa, é descritiva. O que foge da norma não é “erro”: é variante. A gerativa entra lembrando que a criança fala sem gramática na estante, tem estrutura mental pra linguagem. Conclusão prática: no literário, a gente pode desalojar o patrulhamento e escrever com o ouvido no social e o pé no ritmo.
— [telefone toca ao fundo]… Espera. Voltei.
— Pegando o fio: as traduções nos dão uma moldura, mas o português do Brasil é uma usina semântica própria, mistura, cor, ginga. Relendo os nossos, ganhei essa ousadia. E, como eu não tenho memória fotográfica, eu digeri ideias alheias até virarem outra coisa. A origem evapora, mas fica a síntese, a minha. Aí eu enceno: pego um raciocínio que nasceu na filosofia, alimento com minha experiência e ponho na voz de um personagem. A ideia deixa de virar tese e vira destino.
— E faz sentido pro leitor porque acontece diante dele, não numa tese de rodapé.
— Bingo. Com o tempo, vira músculo. Difícil, mas vira. E me parece que tu tá dando os primeiros passos nesse território simbólico.
— Ontem eu rascunhei mais umas doideiras. Sumiram. Hoje voltaram.
— Aproveita o vento. Quando eu paro de ler poesia, minha cabeça destreina. Poesia é fábrica de imagem. Estrutura a prosa por dentro, metáfora é andaime invisível. E toda forma tem unidade de sentido: começo-meio-fim. Romance, crônica, poema: muda o traje, não o esqueleto.
— E o meu texto novo?
— Vamos a ele. Você fez um divisor de águas. Trouxe cenário (que o opinativo dispensa), personagens, inclusive não humanos, e escolheu parágrafo corrido, sem quebras. Isso dá frenesi, empurra a leitura, passa sensação de fluxo único. É efeito de sentido deliberado (ou feliz acidente). Pontuação, nomes, escolhas semânticas: brincar com isso é potência.
— Nomes dizem coisas.
— Demais. Fiz uma crônica com Cleiton Sabiano. “Sabiano” flerta com “sábio”, mas não é “sábio”: é um cara que sabe lá alguma coisa. Um trocadilho sem pular corda. Essa camada psíquico-social no nome é ouro.
— E crítica literária entra onde?
— Aí chama Antônio Candido e companhia. Não é resenha de jornal. É crítica como ofício da linguagem: olhar para coesão, coerência, relações semânticas, finalidade de expressão, e, importante, aceitar que o texto deixa de ser do autor quando encontra o leitor. A obra vira coautoria.
— Referências, você?
— Manuel Bandeira, de Barros, Leminski, a quebradeira do pós-modernismo, herdeira da Semana de 22. Ali a literatura brasileira ganhou uma identidade cara-de-pau que me educou. Em você, vejo uma curva parecida: o opinativo vira narrativa, a tese encarna em bicho, a forma corre sem fôlego pra produzir fôlego no leitor.
— Tá, mas e o jurista dentro de mim?
— Não mata. Cativeiro duplo: durante o dia, concatena; à noite, desconcatena. O direito dá ossatura; a literatura, pele elástica. A regra é simples: no foro, precisão; no texto, precisão com risco.
— Resumo em uma linha?
— Escrever é ajustar o espelho: teu texto novo mostra que o espelho mudou de ângulo, menos tese, mais mundo encenado. Segue. E quando bater a vontade de “corrigir para norma”, lembra: primeiro soar verdadeiro; depois polir. A ordem importa.
— Beleza. Se eu viajar, você puxa minha coleira.
— Viaja. Eu só aviso se cair do penhasco. Até lá, pisa no acelerador, com ouvido na poesia e olho no personagem. Quando quiser, a gente entra no conteúdo do texto ponto a ponto. Por enquanto, fica o mapa: transição de forma ? liberdade de linguagem ? personagem como veículo ? efeito de fluxo ? semântica dos nomes ? crítica como leitura profunda ? leitor coautor.
— Fechado. Bora mastigar isso mais tarde.
— E lembra, meu amigo... como algures dito: “Escrever é o modo mais bonito de se desesperar”.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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