Por Dimas Ramalho
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil embarcou numa verdadeira compulsão legislativa. Segundo dados do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), mais de 8,2 milhões de normas foram editadas, nas três esferas de governo, nesses 37 anos – uma média superior a 850 por dia útil.
Legislar tornou-se uma resposta automática a qualquer problema, escândalo ou clamor público. Instalou-se por aqui uma cultura normativa em que o impulso de criar leis substitui o dever de planejar, avaliar e, acima de tudo, fazer cumprir.
O resultado é um ordenamento jurídico inchado, confuso e frequentemente contraditório. Esse excesso compromete a clareza das regras, dificulta sua aplicação e mina a confiança nas instituições. Daí a expressão tão brasileira quanto reveladora: há “lei que pega” e “lei que não pega”. A própria linguagem popular escancara a ineficácia do sistema legal, naturalizando o descumprimento como algo corriqueiro.
Paradoxalmente, essa produção normativa desenfreada convive com uma omissão crônica: mais de 160 dispositivos constitucionais seguem pendentes de regulamentação, segundo o Senado Federal. Ou seja, cerca de um terço da Constituição tem sua aplicação comprometida, por falta de leis infraconstitucionais que lhe dariam efetividade.
A contradição é gritante. De um lado, normas são editadas em escala quase industrial, muitas vezes sem análise de impacto, viabilidade ou coerência com o arcabouço existente. De outro, temas centrais para o funcionamento do Estado e a garantia de direitos permanecem indefinidos, congelados em dispositivos que, sem regulamentação, tornam-se letra morta.
O direito de greve dos servidores públicos é um exemplo emblemático. Previsto no artigo 37, inciso VII da Constituição, depende de regulamentação para garantir segurança jurídica ao seu exercício. Passadas quase quatro décadas, essa lei nunca foi editada.
O vácuo tem sido preenchido por decisões judiciais casuísticas, muitas vezes contraditórias, que oscilam entre reconhecer a legitimidade das greves e impor severas restrições. O resultado é um cenário de incerteza tanto para servidores quanto para a administração pública –e, sobretudo, para a população, que arca com os efeitos dessa omissão.
Outro caso notório é o da criação de municípios. A Constituição, em seu artigo 18, §4º, exige uma lei complementar federal para viabilizar o processo, estabelecendo critérios, prazos e condições. Desde a Emenda Constitucional 15, de 1996, essa regulamentação se tornou obrigatória – e, quase 30 anos depois, segue inconclusa.
Há ainda lacunas importantes em áreas como reforma agrária, seguridade social, meio ambiente, sistema financeiro, direitos dos povos indígenas e educação básica indígena. Em todos esses campos, a omissão do legislador representa não apenas inércia institucional, mas o esvaziamento prático de promessas constitucionais ainda não cumpridas.
Essa dissonância entre excesso e omissão revela um desvio de prioridades. Pressionado por ciclos eleitorais curtos, interesses corporativos e demandas midiáticas, o Congresso frequentemente privilegia leis simbólicas e imediatistas. Enquanto isso, temas estruturais –mas juridicamente complexos e politicamente menos rentáveis– são negligenciados.
A inflação legislativa, longe de indicar eficiência normativa, evidencia justamente sua ausência. Um ordenamento repleto de normas mal aplicadas ou inaplicáveis enfraquece a autoridade da própria lei. Ao tornar-se onipresente, ela corre o risco de se tornar irrelevante. Em vez de promover ordem, previsibilidade e justiça, o sistema jurídico acaba alimentando confusão, arbitrariedade e descrédito.
Romper com essa lógica exige uma mudança de paradigma. O país precisa abandonar a cultura da legislação reflexa e adotar uma política normativa centrada na qualidade, na simplicidade, na estabilidade e na efetividade. Isso implica revisar o estoque legislativo, eliminar redundâncias, sistematizar o ordenamento e, sobretudo, regulamentar os dispositivos constitucionais ainda pendentes.
Enquanto isso não ocorrer, o Brasil seguirá convivendo com leis que não pegam, com direitos que não saem do papel e com uma Constituição que, embora celebrada em discursos, permanece parcialmente ignorada na prática.
Um país que se habitua a viver entre o excesso e a omissão legislativa dificilmente conseguirá consolidar um Estado de Direito pleno. Afinal, a força da lei não está na sua quantidade, mas na sua capacidade de produzir justiça concreta e eficaz.
Dimas Ramalho é vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
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