Por José Carlos Abissamra Filho*
O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, licenciou-se do cargo em meio a uma grave crise no setor para relatar, na Câmara dos Deputados, o recém-batizado Marco Legal de Combate ao Crime Organizado, que se propõe a dispor sobre mecanismos de combate às organizações criminosas no país, recrudescendo penas e propondo mudanças de natureza instrumental.
Toda essa movimentação de afogadilho, esse vaivém sem sentido e sem direção, é como uma confissão de que não sabemos o que fazer. Estamos perdidos.
Para combater a atuação das facções criminosas, o Brasil não precisa de mudança de legislação, mas de uma análise de nosso sistema de segurança pública baseada em dados e evidências científicas, que nos permita fomentar a racionalidade legislativa e a formular políticas públicas eficazes e funcionais.
O problema da criminalidade é muito mais profundo, e essas mudanças legislativas açodadas -- como o recrudescimento de penas e a criação de novos tipos penais -- não o enfrentarão. Pelo contrário, tendem a agravá-lo, pois reforçam justamente o que tem dado errado.
O cerne da criminalidade moderna está na política de “guerra às drogas”, inspirada em modelo norte-americano implementado na década de 70, ou seja, há mais de 50 anos. Ao gerar escassez de um produto amplamente consumido, essa política eleva seu valor.
Pela lógica da oferta e da procura, quanto maior a demanda por um bem de difícil acesso, mais ele se valoriza, e mais pessoas se arriscam a ingressar nesse mercado ilegal em busca de lucro. O resultado é o aumento da criminalidade, não sua redução.
Nenhuma proposta legislativa recente enfrentou esse fato, razão pela qual o problema permanece insolúvel.
Faria melhor o presidente da Câmara dos Deputados se chamasse um economista, um criminólogo ou um pesquisador ligado às ciências criminais para relatar o projeto. Em vez disso, escolheu justamente quem, como gestor público da segurança, não deu conta do recado.
Ao abandonar sua função como secretário para relatar um projeto de cunho político, e não jurídico, o que se demonstra é que seguimos, como sociedade, sem a mais remota ideia de como reduzir a criminalidade.
No mérito, a criação de novos tipos penais e o recrudescimento de penas não resolverão o problema, e ainda o agravarão. Nas últimas duas décadas, a ampliação do encarceramento foi constante, e a criminalidade, igualmente crescente. Há evidências científicas de correlação direta entre endurecimento penal e aumento da violência, o que deveria ser objeto de estudo por especialistas, não apenas por políticos.
O tema é abordado com profundidade em Política Pública Criminal, obra em que defendo que o sistema penal deva ser compreendido como uma política pública como qualquer outra, sujeita à avaliação de eficiência, resultados e conformidade com a Constituição.
A criminalização de condutas não pode ser um ato simbólico ou meramente político, mas uma decisão racional e mensurável. O livro propõe um modelo de aferição da idoneidade das políticas criminais, baseado em dois pilares: a conformidade formal e material com a ordem jurídica e a sustentação empírica em dados concretos que justifiquem a intervenção penal.
Em outras palavras, o poder punitivo só é legítimo quando demonstrar utilidade social, proporcionalidade e resultados verificáveis. Caso contrário, é apenas exercício simbólico de força, disfarçado de política pública.
Há mais de cinquenta anos insistimos em respostas políticas, como essa, a um problema que só se agrava. É hora de trazer acadêmicos e pesquisadores ao debate legislativo.
Daqui a dez anos — anotem — veremos que esse projeto não terá produzido os efeitos prometidos. E, como tantas vezes antes, a realidade da segurança pública brasileira seguirá igual ou pior.
A tática de transformar um tema político em cortina de fumaça, criando novos nomes para fenômenos criminais conhecidos apenas para colher ganhos eleitorais, serve apenas para esconder o fracasso da gestão da segurança. Ao deslocar o debate dos dados para o palanque, cria-se um ruído que captura a atenção da imprensa e desvia o foco da discussão que realmente importa.
Essa estratégia é velha, ineficaz e insustentável até no curto prazo. E o Brasil continua à deriva em matéria de segurança pública.
José Carlos Abissamra Filho*
Presidente da comissão especial de advocacia criminal da OAB/SP, é mestre e doutor em direito penal pela PUC/SP e autor de Política pública criminal: um modelo de aferição da idoneidade da incidência penal e dos institutos jurídicos criminais, publicado pela Juruá Editora
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