Opinião

A palavra fez-se carne

“Memórias de um homem comum diante do extraordinário”
Da Redação
15/11/2025 às 06h49
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Por Thiago T. Canossa

 

À mão, uma velha caneca com as marcas do tempo firmava-se entre os meus dedos com as unhas carcomidas. Sem exageros, claro. Sensato que se lhes mantenha a higiene e uma estética digna aos que nelas botem olhos durante o percurso dos dias ditos úteis. As mãos peladas, com seus componentes em movimento, dizem muito sobre o portador. Se carcomidas, as unhas, adornam-se à condição de cicatrizes temporárias, reveladoras dos estados psíquicos que me envolveram nos últimos dias, prontos a me avocarem as ânsias, novamente, em tempo certo, no auge dos pensamentos abstratos, reveladores das coisas mais improváveis, até que a dor aos dedos me abrace e eu me convença a postergar o mau hábito. Manias, diria, que transitam entre a sanidade e o átimo que convida à libertinagem das loucuras ambicionadas, quais, infelizmente, não se materializam pela força das convenções. Manias, cada qual tem as suas, causa dos anseios e descontroles vigiados pelos bons costumes, exigidos à vida de um homem civilizadamente considerado.

 

Nela, o café quente recém-coado, às primeiras horas de uma anunciada manhã de sol, convidava-me à reflexão ao cabo dos primeiros goles. Ao brando toque de fundo, ouvia “That old feeling”, do polêmico Chet Baker, lenda do cool jazz, morto em mil novecentos e oitenta e oito pelo vício em heroína, aos cinquenta e oito anos de idade. Curiosamente, o ano em que nasci. Nesse estado de espírito, puxei da pequena biblioteca no interior de um dos quartos um livro aleatório e o abri em página indistinta, não em busca por contexto, mas por uma única palavra. Nada mais que isso. Fosse ela qual fosse. Na página 88 – mera coincidência, talvez – de um opúsculo, ao tempo que consumia as notas musicais transitando leves entre as linhas de minha pele, fechei meus olhos. Ao abri-los, meu olhar focou em uma palavra ao grafite escuro de um lápis destacada: “Epicteto”.

 

“Epicteto”. “Epicteto”. “Epicteto”. “E-pic-te-to”. Repetia. Uma, duas, três vezes, saboreando-a, buscando no compasso da glote um sentido foneticamente prévio à semântica própria da nomenclatura, a fim de integrá-lo, o som do termo produzido pela vias orais, aos elementos musicais sonoros que promoviam a alta vibração daquela raridade musical, tocando brandamente as emoções que me transbordavam, tal qual as lágrimas intempestivas. Era cedo.

 

Embora já o conhecesse, ao menos em escrito, busquei no dicionário: “Epicteto foi um filósofo estoico grego, nascido por volta do ano 50 d.C. em Hierápolis, na Frígia (atual Turquia), e morto por volta de 135 d.C. Uma das vozes mais lúcidas e humanas da filosofia antiga, um homem que transformou a própria condição de escravo em caminho para a liberdade interior”.

 

Naquele rotineiro ato, por força da invocação, vieram-me furtivamente as lembranças de um passado não mui distante, em tons provocativos à reflexão, das nuances que envolvem a doutrina filosófica de Epicteto: o estoicismo, que tantos inspirou, conduziu, deixando marcas indeléveis aos que se propuseram a compreendê-la, mormente os que, atualmente, se esforçam em colocá-la em vias práticas, nos atos mais comuns da rotina pessoal. Crisipo, Sêneca e Marco Aurélio são provas disso. Pergunte a eles.

 

Em termos gerais, para os estoicos, o sábio não é o insensível, mas aquele que aceita o mundo como ele é e, ainda assim, vive e age conforme o bem. Aproxima-se, no oriente, às doutrinas de Buda, em torno, essencialmente, da atenção constante ao momento presente, esse sim, o verdadeiro termo do tempo, que semeia a paz sobre a calamidade das emoções inerentes à realidade posta, à revelia de quaisquer vontades.

 

Engraçado o poder remissivo de uma palavra, que isolada, no máximo satisfaz a curiosidade de um leitor desavisado. No entanto, tal qual a harmonia musical, a palavra tem o poder evolucionário de evocar memórias em torno de seu significado, sempre flexível ao intérprete. E isso é muito pessoal. Por meio dela, lembrei-me de outras ideias, oportunas apenas àquela ocasião, aliadas aos elementos devidamente integrados ao momento: as notas tristes da harmonia ao fundo, a mente e a palavra, que ganhava vida enquanto minha voz a reproduzia. Em outras circunstâncias, outras fossem as instâncias, memórias e pensamentos.

 

O caso é que me lembrei. E é pertinente, caro leitor. Pertinente porque as ideias conectam-se entre si, formulam novos caminhos de sinapse para um sentido maior, propriamente construído, afastando as hipóteses e os frutos do mero acaso. A questão é que funciona, e o resultado dessa alquimia lexical nos conduz a uma nova forma ou estrutura, estado de ânimo, espírito, ao menos que se lhe goze por míseros instantes. Ao menos, ainda, que se lhe compartilhe, com vistas ao prazer indescritível de ver se formarem os lampejos nas expressões faciais alheias, promovidas pela nova ideia expressa ao receptor da mensagem, que possa compreendê-la, e que, por meio dela, formule outras ideias, e outras ideias, e outras ideias, que passam a outros e outros e outros pra tornarem-se outras ideias, num ciclo de pequenas transformações a se perderem de vista.

 

Lembrei-me de alguém. O pensamento buscava reminiscências evocadas pelo breve instante, eternizado entre o ócio e a obrigação. Lembro-me como hoje.

 

À mente – a música ao fundo – reproduzia claramente a imagem dele. Não foi famoso e não nutria ambições. Vivera como o silêncio por poucos sempre quisto, incômodo aos ruídos que limitam o ato de pensar. Muito pensava, disso eu não tinha dúvidas. Quem o conheceu, sabe. Conversava com sorrisos cadenciados pelos atos suaves com que se propunha a intervir nos dias. Como se estes, com todas as suas atribuladas atribuições fossem apenas um convite ao agora. Com ele, a conversa era uma brisa leve que se alternava entre os ritmos dos sutis movimentos corporais que anunciavam um novo viés às concordâncias.

 

À memória, certa vez, sentados em cadeiras de varanda sob o ar bucólico de um rancho veranil, contou-me por baixo sobre algumas ideias que vinha nutrindo. Fraseando algumas palavras mudas, como que indiferente à importância do relato, cruzou as pernas morenas, eivadas de pelos bem aparados, apôs o dedo sobre a boca, olhou ao alto e sussurrou: “Medianimismo”.

 

Não tinha formação básica, talvez a tivesse, mas daquelas bem essenciais aos mínimos atos da vida civil. Os períodos nem sempre eram bem conjugados, a sintaxe oral era parca, mas se fazia entender aos ouvidos atentos à compreensão. Escrever, esquece. No máximo o próprio nome, para as ocasiões imprescindíveis. Não dispunha necessidades, dessas comuns ao ser humano médio, ansioso pelos êxtases de prazer regado a álcool, comida e mulheres. Contentava-se por si só. E isso era pouco compreensível a estranhos.

 

“Medianimismo”. Pedi-me que desenvolvesse o raciocínio em torno da palavra.

 

- Você, meu sobrinho, bem sabe que não sei ler e que a leitura de livros, ao menos a mim, configura ato de heroísmo dedicado a poucos ungidos.

 

Obviamente, isso foi dito de outra forma. Muito mais simples, sussurrada, posto que o seu forte era pensar. A expressão lhe era mais um defeito que virtude. Mas, como leitor experimentado, nas entrelinhas, conjuguei os elementos ditos, ainda que disformes, aliados à sua personalidade, que me franquearam o ingresso a uma possível unidade de sentido.

 

Limitando-se àquela palavra, fitou-me longamente com olhar de quem aguarda comentários.

 

- E, a seu ver, - perguntei -, do que trata o medianimismo?

 

- A bem da verdade, eu não sei te dizer. Certo, porém, é que tenho em mim algumas palavras guardadas para junção em oportunas ocasiões. Mediano. Palavra constantemente pronunciada pelas pessoas com certo grau de instrução. A razão, eu também não sei. Mas deve lá ter a sua importância. Na falta de um sinônimo, usam essa. Animismo, já nem tanto. Mas as mesmas pessoas do “mediano” costumam às outras se referir, ou chamá-las de animal, com certa razão, acredito. Juntei as duas, tão somente. Medianimismo. Agora, diga-me você. O que você acha?

 

Pensei por alto, sem saber ao certo onde ele queria chegar, sabendo, de antemão, é claro, que ele não queria chegar a lugar algum. Era aquilo e ponto. Duas palavras guardadas a sete chaves para se integrarem àquele momento sem qualquer significado aparente.

 

Ficou naquilo. Tentei buscar uma interpretação ao termo a fim de lhe desvendar o mistério por ele mesmo construído. Balbuciei algumas teorias acerca do homem mediano, que vive conforme às regras sociais com o fim maior de contribuir com a paz social. Falei-lhe sobre o animismo, mas em termos bem circunscritos à palavra: doutrina dos animais, ciência do ânimo, sei lá. Coisas que se fala sem saber o que se é. Medianimismo. Que diabos ele quis dizer com isso?

 

Sinceramente, eu não sei.

 

Ao cabo dos dias posteriores, a palavra matraqueava minha mente. Tentei alocá-la nas experiências mais simples dos dias, nas relações, nas palestras e conversas com colegas de serviço. Não fui à busca de livros, internet nem dicionários. A missão era construir o sentido daqueles fonemas sem qualquer referência angariada por experiências exteriores.

 

Pensei demoradamente sobre aquilo. O termo, inventado ao acaso ou por alguma revelação espontânea do espírito, tinha corpo. Tinha carne. Dava-se a ver em cada esquina, em cada olhar resignado que cruzava o meu durante os dias.

 

Os dias se passaram após aquele encontro de brevíssimas palavras.

 

Tempos depois, meu caro, aquele meu tio, o sensato neologista morreu. De súbito. Nada possuindo, nada deixando, a não ser os encontros silenciosos entre as pausas dos mistérios.

 

Findo o luto, com todos os acessórios sentimentais que lhes são inerentes, a vida seguiu. A mim, no entanto, ele legara aquela palavra e as lacunas de seu pensamento pouco conhecido.

 

Anotei-a em um bloco de notas sob minha posse, aberto à ocasião das conversas, encontros e circunstâncias posteriores. Em letras altas, no centro de uma página: MEDIANIMISMO.

 

Pus-me, então, à jornada de decifração. Obviamente, não chegaria ao âmago do que meu tio talvez tenha proposto. Talvez ele mesmo não o soubesse. Assim como os escritos de autores mortos, não é mais possível lhes questionar a causa de suas ideias, mas somente tentar interpretá-las à luz do que se vive.

 

A vida seguiu seu termo. Atento às conversas, nas interlocuções mais banais, nos cumprimentos, enfim, nas relações, tentei preencher as lacunas dos sentidos com aquela palavra. Difícil de encaixá-la à rotina. É como forçar uma peça não pertencente à unidade de um quebra-cabeças. Ou como uma estratégia ignorada durante uma partida de xadrez. Eu, no entanto, senhor das desobediências, sempre acreditei que o sentido é possível, seja ele qual for. Basta o foco, a criatividade, e, no devido momento, tudo acontece.

 

Pessoas vivem alienadas de um sentido maior. Alienam-se a si próprio em torno do conforto de uma vida que logo acaba. Buscam as glórias, semeiam veladas concordâncias para distribuírem a discórdia. Correm, trabalham, sonham, se estafam e dormem, até que a vida lhes traga a dor, desviando as águas do caminho para outros. Com a idade, outros caminhos, outras dores. E a felicidade? Sempre postergada. Quando na verdade, não. Ela é constante e permanente. Não a percebemos. Mora nas coisas ínfimas do instante presente.

 

Nessas reflexões, angariadas com o esforço de uma mediana percepção, cheguei a uma possível conclusão.

 

Medianimismo: disposição anímica do homem comum que, situado entre a razão e o instinto, vive na fronteira tênue onde se confundem a aceitação estoica da realidade e a submissão rotineira ao hábito. Trata-se da condição espiritual daquele que, parcialmente consciente de si, adapta-se ao mundo não por virtude, mas por sobrevivência; que se resigna às normas sociais não por sabedoria, mas por cansaço; que convive com a própria mediocridade não como falha, mas como fato. O medianimista não é servil nem rebelde, mas oscila entre ambos: pensa, mas raramente aprofunda; sente, mas reprime; age, mas quase nunca decide. Seu ânimo (animus mediano) é guiado pela prudência covarde dos dias úteis, pelos bons costumes impostos e pela necessidade silenciosa de não contrariar o fluxo geral das expectativas sociais.

 

Diferentemente do sábio estoico, que aceita o destino para conquistar domínio sobre si, o medianimista aceita o destino para não ser perturbado. Suporta a irracionalidade do chefe, a incompetência das instituições, a injustiça das relações e a mecanização da vida porque teme mais o desconforto da mudança do que a dor do conformismo.

 

Ainda assim, não é um conceito trágico. O medianimismo é também o estado latente daquele que, por breves instantes, um café quente, uma música antiga, uma palavra perdida em um livro esquecido, percebe a própria condição e intui algo maior. Esses lampejos de consciência não o redimem, mas o humanizam. Revelam-lhe que, mesmo preso ao meio-termo, ele possui a centelha de lucidez suficiente para compreender sua prisão.

 

Em suma:

 

Medianimismo é a filosofia não escrita dos que vivem no intervalo entre o que são e o que poderiam ser, um estoicismo imperfeito, um animismo domesticado, a mediania racionalizada de uma humanidade que busca sentido sem nunca ousar romper o círculo que a contém.

 

Fechei o caderno. Voltei à caneca, agora já morna, com aquele resto de café que sabe mais a memória do que a bebida. A música ainda tocava, Chet Baker, com sua triste elegância, desenhava no ar um sopro de abandono e coragem. Pensei em Epicteto, no escravo que virou mestre; pensei no meu tio, no desconhecido que virou filósofo; pensei em mim, entre a caneca e as palavras, em busca de sentido para não sucumbir ao hábito. Em cada um deles havia um modo distinto de enfrentar o mundo: uns pela disciplina, outros pela simplicidade, eu, pela escrita. Mas todos, no fundo, tentando lidar com essa condição traiçoeira de ser um animal que pensa e, por pensar, inventa nomes para suportar o peso de existir.

 

Talvez seja essa a verdade do medianimismo: a tentativa humilde, e por isso mesmo grandiosa, de permanecer desperto no meio da sonolência geral. Não a glória dos sábios, nem a resignação dos fracos, mas o breve instante em que o homem comum ousa olhar para si e reconhecer que não sabe nada, mas ainda assim prossegue. Um estado de espírito, um fôlego, um intervalo iluminado entre as tarefas e as dores. Uma filosofia silenciosa, nascida no rancho, soprada ao ouvido como um segredo inútil e essencial.

 

Enquanto Chet Baker fechava a última nota, um sopro que parecia cair do alto, como as palavras que às vezes nos visitam, compreendi que o sentido não estava no termo, mas no gesto que o criou. O mundo é um livro aberto, sim, mas lido sempre na altura dos olhos que o percorrem. E, naquele momento, à beira da manhã, com uma caneca entre as mãos feridas e um nome antigo a ressoar na glote, percebi que ele me deixara não um conceito, mas um convite: viver sem pressa de ser extraordinário. Ser, apenas, humano.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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