Por Thiago T. Canossa
No bilhete, vestígios indeléveis de um passado que provavelmente o amassara. Encontrei-o no bolso traseiro de uma calça jeans, típica dos dias comuns, o papel de tom amarelado - agora em dobras sucessivas - como que a ocultar a informação há muito nele inserida. Um nome e um telefone.
Sentado em um dos sofás dispostos no local, aguardava pacientemente a chamada para a consulta há meses agendada. Ao meu lado esquerdo, uma pequena mesa redonda, sobre a qual se dispunha um abat-jour apoiado por dois pequenos livros. Ao dia de trabalho, uma folga para tratar questões relativas à saúde mental. Consultas médicas são assim: exigem certa paciência à rara oportunidade de se lhe despejar os males pouco digeridos. Pela resistência à obrigação de esperar despido de qualquer distração, puxei aleatoriamente um daqueles livros às mãos. No título - “O esquisito” - em meio ao qual, após o manuseio de algumas páginas, deparei-me com um pequeno papel, certamente destacado de um bloco de notas de ordem comercial, no qual se inscrevia, em letras claras e corridas, a seguinte informação: “Mavi – 55 18 991040498”.
Pousei o bilhete no colo, como quem toca coisa íntima demais. E, então, vaguei-me a ler um capítulo aleatório: “Sobre a indiferença”.
“Intimamente, rogo que você, leitor, utilize dessas informações com inteligência e discernimento e que as concretize o quanto lhe seja possível, sem o quê, a força da expressão se esvai, tornando mortas as palavras ora vividamente intencionadas, arrazoadas com vistas a iluminar o anseio íntimo que lhe relativize as falsas convicções. Ato contínuo, por força dos fundamentos expostos e exemplificados no capítulo anterior, chamamos de indiferentes os que não enlouqueceram diante do mundo, mas também não se adaptaram. Vivem à margem do progresso não por preguiça, mas por desconfiança. Sabem que o novo pode ser uma armadilha. Sabem que a pressa é um vício”.
Olhei ao redor, não sem antes vasculhar aquele pedaço de papel. Talvez nele houvesse outras informações que lhe agregasse algum sentido. Talvez fosse um papel qualquer, mera anotação, destituída de qualquer intenção maior ou entrelinha. Ou ali tivesse sido deixado, a fim de que o mantivesse intacto ante a uma chamada urgente ou um compromisso de última hora, para atenção posterior, em momento apto. “A curiosidade engendra ideias; as ideias reformam ou desconstroem o sentido do mundo”, diria o líder da banda “Engenheiros da Transmutação Banal”, em entrevista veiculada naquele instante, por um canal aberto de televisão, no aparelho televisor instalado na clínica.
A sala de espera compunha-se de pessoas diversas; no local, variadas eram as especialidades médicas para atendimento. Fechei o livro, embora ainda naquela reflexão, entre o bilhete e a indiferença. Cada qual sentado em seu canto, aguardando silenciosamente a convocação. Distraíam-se com telefones celulares, rindo sozinhas, franzindo as testas, digitando freneticamente, sem olhar ao lado – tocavam botões que nem mesmo existiam. Os mais velhos, que eram poucos, conversavam entre si, sem se preocuparem com os demais. Falavam sobre tudo, sobre o passado, sobretudo. Alguns poucos nada faziam, a não ser esperar. Sentados a esmo, fixavam o olhar pétreo dirigido ao vazio. Entre uma e outra bocejada, ao chão devolviam os olhares, como quem nele busca por respostas que no céu ainda não haviam sido encontradas.
Pego o telefone. Digito os números. Ligo.
- Alô – responde uma voz suave e serena, como quem se alegra ao receber uma ligação não mais esperada.
Seria Mavi? Hesitei quando um senhor se ajustara ao meu lado.
- Com licença – disse ao se sentar bem próximo, cruzando as pernas com movimentos leves e sutis, apertando-se entre os demais.
Desliguei.
Que demora! Voltei ao livro. De forma geral, ali se discorria sobre comportamentos naturais e comuns à espécie humana, relegados à condição de anormalidade por força de opiniões emitidas por uma minoria que, a seu tempo, lhes dera condição normativa — como quem molda o barro ao formato da própria mão e depois declara: “a natureza é assim”. Para a autora, esquisito era o verdadeiro normal. Diga-se: o que está em conformidade com a norma - não a norma social, nem a moral, muito menos a de conveniência. A norma natural. Citando com precisão: “Exquisitus”, do latim: Escolhido. Distinto. Elegante.
Os pacientes aparentemente normais – aqueles no celular – já haviam sido atendidos, em grande parte. Os demais, ainda aguardavam, olhando para o vazio. Em tempo, aquele senhor, casualmente vestido, apresentou-se, perguntando em tempo sobre o livro em minhas mãos. Disse-lhe que não me pertencia e que o lia durante a espera.
- Gosto de ler. Puxei-o dessa mesa para distração no interstício do atendimento.
Chamava-se João Sabino. Olhava ao relógio de quando em quando. Talvez por medo do tempo. Talvez pressa, ou mera mania.
- A ver pelo título, um tanto quanto conveniente ao tempo em que vivemos. O mundo está uma loucura, e os esquisitos, em momento devido, irão conquistá-lo, para o mal da humanidade.
Não lhe falei sobre o bilhete. Pediu-me para ver o livro. Cedi-lhe. Sua concepção acerca do título não correspondia à proposta da autora. Talvez, lendo-o, não compreendesse a razão daquelas ideias escritas e viesse a me questionar opinião. Antevendo, pedi licença, coloquei o bilhete em um dos bolsos, e saí. Liguei.
- Alô – a mesma voz do outro lado da linha.
- Olá. Encontrei um bilhete dentro de um livro, com esse telefone sobreposto ao nome “Mavi”.
- Maria Vitória. Morrera há pouco. Estamos desesperados, buscando pelo motivo, embora saibamos da causa. Jogou-se à via, foi atropelada por um caminhão.
Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. Nem sei se se esperava por razão ou resposta. A chamada foi encerrada pouco depois, com um obrigado seco, como se a voz que me atendia estivesse agradecida por nada — ou talvez por tudo.
Voltei à sala. Desliguei o aparelho. Olhei novamente para a mesa. O abat-jour continuava aceso. João Sabino já não estava. O livro permanecia ali. Reabri na primeira página. Havia uma dedicatória, quase ilegível, escrita à caneta azul:
“Ao leitor, com esperança de que encontre alguma razão no que não se explica. — M.”
Guardei o bilhete de volta entre as páginas. Não sei se para preservá-lo ou para devolvê-lo ao mundo. Levantei-me quando me chamaram. Tomei de volta o bilhete, coloquei-o no interior do mesmo bolso, sem cogitar o motivo. Estava atrasado para meu próprio diagnóstico. Senti-me esquisito.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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