Por Thiago Torres Canossa
Não há muito que se faça. Araçatuba, município de médio porte com certa relevância na economia regional, foi fundada no início do século vinte. Filha do café, embora cultivada com o gado, nasceu no início do aludido período, por força de uma semente germinada no Noroeste do Brasil, quando os sons dos trilhos insurgentes tomavam posse dos silêncios há muito cultivados pelos aborígenes locais. Araçá, fruta nativa da mata atlântica. Tyba (ou tuba), designativo de abundância. O nome, de espectro indígena, sobreviveu, mas aos poucos, ao lento passo dos tempos, com a chegada dos exploradores, teve substituídos seus posseiros nativos, com sua cultura e instrumentos rudimentares, por canetas, escrituras públicas e terras cultiváveis.
Já em tempos republicanos, com o declínio da cultura do café no Vale do Paraíba, a elite paulista, com sede de novos lucros, voltou os olhares para o interior do Estado de São Paulo, na famigerada “marcha para o interior”. No devido tempo, com a chegada de migrantes, a cidade mergulhou no ciclo do boi gordo, consolidando-se como um dos maiores polos de criação e abate bovino do país, especialmente na segunda metade do século. Nascia a fama da cidade: terra de rodeio, frigorífico e camionete.
A largos passos, o chão fértil deu lugar a pastos, cachos e cabras machos. Logo, a “Terra do Boi Gordo” virou marca registrada, sinônimo de riqueza com gosto de carne assada. Hoje, por aqui, tudo que é pesado tem prestígio: tratores, silos, caminhões. E, reitero, camionetes.
Araçatuba é cidade de médios donos. Empresários do agro e do asfalto, comerciantes de sucesso local e herdeiros precoces. Políticos que sabem onde encostar as mãos, e eleitores que nem sempre sabem onde bater as panelas. Lugar onde se estaciona na calçada e se acha normal, onde o barulho das modas de viola ecoa nas noites sem fim e o sucesso se mede em cavalos — os de potência, não mais os de mangalarga.
Foquemos atenção, por ora, nas camionetes, elemento essencial para a reflexão que proponho expor nestes breves apontamentos.
Esse modelo veicular, repleto de simbolismo para a trama que virá, veio-nos por força dos anseios de Henry Ford, sobre quem creio não precisar delinear, haja vista os feitos chancelados no respectivo nome, ao longo do passado século. Tal qual inúmeras outras contribuições dos nossos irmãos nortenhos, a camionete veio a calhar como substituto efetivo do equino, animal de porte e força pungente mais que adequado para as tarefas majoritariamente agrárias. Nativo das américas, os cavalos foram extintos há cerca de dez mil anos em virtude de mudanças climáticas ou mesmo por ação humana.
Em 1519, os espanhóis, liderados por Hernan Cortez, desembarcaram no México com uma carga de equinos, tendo sido adotados pelos nativos ao redor das américas, com os quais transformaram sociedades agrícolas em culturas nômades, guerreiras e equestre. Na américa latina, o animal agregou-se à imagem do gaúcho, do vaqueiro, do llanero e do charro. Na América nortenha, pintou a figura do cowboy, com todas as façanhas de exploração que nos é conhecida. É figura central na construção da economia rural, do tropeirismo ao agronegócio, e da própria estética do poder no campo.
O cavalo era, essencialmente, a extensão da soberania individual, ampliava o corpo, o alcance, o domínio sobre o espaço. Ser cavaleiro era ser nobre, e isso atravessa a cultura até hoje, com ecos inclusive nos nomes de cargos militares, "cavalaria", ou mesmo nas lides modernas do agro, agora de tração mecânica.
O nome virou medida de força. Dos antigos relinchos aos roncos dos motores.
Pois bem. Em 1948, o arquétipo Ford F-Series. Mais tarde, outras marcas e modelos, até a ascensão do modelo japonês: Toyota/Hylux. Nome que ecoa. Não se engane. Se não ouviu falar, com certeza já se deparou com alguma dessas máquinas na rotina do trânsito de qualquer cidade, seja lá de onde me lê. Aqui não é diferente.
Conto com a discrição do leitor. Ninguém, além de mim e ti, precisa saber dos arrabaldes de um homem, salvo se de notório interesse público, o que não vem ao caso. Cá entre nós, Gustavinho, figura de eventos pouco conhecidos em Araçatuba, a não ser por alguns que com ele travaram imerecido contato, nunca tivera mínima noção das coisas que ora lhe exponho. Teve oportunidades sim, mas não que isso lhe fosse fonte de interesse. Nem sobre a cidade, camionetes, muito menos sobre cavalos.
Não o conheci pessoalmente. Os eventos com os quais tive contato me vieram ao conhecimento na condição de um jornalista medíocre que sou. As matérias de relevo não me diziam respeito, já tinham dono e contato certo. Sobravam-me os relatos em reclamações trazidas à sede do jornal. As notícias vinham por meio de cidadãos comuns, nada que me fosse financeiramente vantajoso. Creio na comunicação e na sua função social dentro do Estado Democrático de Direito. A imprensa, pelo menos em tese, tem o dever de zelar pela imparcialidade dos seus interesses, checados às minúcias na veracidade dos fatos, na idoneidade das fontes, velando sempre pela verdade, acima de qualquer preço.
A fé move qualquer ideologia, até que se lhe oponha um franco obstáculo, apto mesmo que o torne fraco, a ponto de lhe imiscuir mesmo o que se paga por ser o mais barato. O ponto é que jamais cheguei a publicar quaisquer dessas notícias, embora, confesso, nisso tenha arduamente me concentrado. Forças maiores me impediram já na primeira tentativa, motivo pelo qual fui despedido.
- Isso aí não dá matéria, Romário. Se esse é o tipo de coisa que almeja, vá escrever um livro, e siga sendo pobre. Quero leitores, assíduos e contumazes, não pensadores. Caso insista, dou-lhe as contas. Vá ser feliz. Não somos pagos para publicar insignificâncias. Deixe de implicar.
Assim o fiz. Agora, no leito da escuridão desse quarto, sob baixa luz, deixo ao amanhã o que tiver de ser. Quero lhe contar o que não pude publicar.
Gustavo Cavalcante Neto, apesar do nome, não era dado a cavalgadas. Descendente direto de migrantes que dizem por aí terem fundado a cidade, teve o nome destacado pelas façanhas do avô, fama herdada pelo pai, que lhe oportunizara amplas condições de vida. Aos dezoito anos de idade, conquistara uma vaga na universidade para o curso de agronomia. Ou pecuária? Não me recordo desse detalhe. A faculdade tinha poucas exigências para o ingresso, tal qual dizem por aí: Papai pagou, passou.
Nunca foi dado aos estudos, porquanto do conhecimento não precisava.
Era herdeiro e nessa condição não havia motivos para o pleno desenvolvimento técnico, muito menos do intelecto. O fato é que tal aprovação lhe angariara o orgulho da família, mormente o do pai, saudosista, verdadeiro mecenas dos Cavalcante, a ponto de, com a notícia, decidir presenteá-lo.
Obviamente, Gustavo não merecia uma oferenda qualquer. Um insulto seria. Afinal, um ato de heroísmo deve, sempre que possível, ser retribuído à altura da glória conquistada. E, claro, isso lhe era claramente possível. Em uma segunda-feira útil, ao acordar pela manhã já avançada - no primeiro dia de aula - tateara um objeto ao lado do travesseiro. À sua vista, uma chave brilhantemente metálica com um símbolo mundialmente requisitado: Toyota. Na intimidade, o pensamento: “Não bastasse ser conhecido. Finalmente, fui reconhecido”.
Levantou-se. A casa estava vazia. Na garagem, seu novo equino, uma Toyta/Hylux, enorme, mais escura que um cavalo frísio. Não era justo que se perdesse tempo, a vida era curta, afinal. Era o primeiro dia de aula.
- Que diabos fazer na faculdade. Troco-me e vou rodar.
Um sorriso ao canto dos lábios.
- Agora ninguém me segura.
Desfilaria pela cidade com sua nova máquina, despertando a inveja dos amigos e concidadãos. Não era habilitado, é verdade. Mas isso não lhe importava. O próprio pai guiava com a carta vencida. Todos o conheciam, os Cavalcante sempre podiam.
Vestiu-se adequadamente. Botas ao couro de cobra, fivela quadrada de ouro e chapéu.
Virou a chave. O ronco era forte. Sentiu-se outro. Saiu.
Gustavo vislumbrou, com brilho nos olhos, a imensa tecnologia disposta no painel. O couro do volante lhe pareceu pele de serpente domesticada. Havia botões por toda parte, pequenas luzes que piscavam como vaga-lumes de luxo. Era, segundo seu íntimo juízo, mais moderno que qualquer avião.
Distraía-se ao dirigir, encantado com o display reluzente e as luzes vivas do sistema de som. Sem delongas, conectou o celular ao bluetooth da Hilux. Entre olhares que se alternavam, um à rua tomada por carros em marcha, outro ao visor do telefone, procurou uma música. Queria algo que o representasse. Que dissesse ao mundo, sem necessidade de palavras, o que ele era.
Achou.
A batida começou seca, violenta, marcada por graves que pareciam querer rebentar a lataria da própria caminhonete. Subitamente, o som preencheu o ambiente, tremeu os vidros da Hilux e, com sorte, a alma dos transeuntes. Era uma viola distorcida, enfeitada de batidas eletrônicas, em cuja letra, num grito de guerra com sotaque fabricado, se dizia: “— As puta que não me aguardem, hoje tenho hora não, vou beber, cair, e, quem sabe, fazer tremer o cão”.
Sorriu.
Ao cabo de poucos instantes, distraído entre o grave pulsante da música e a vaidade refletida no vidro do painel, Gustavo freou com brusquidão. Tarde demais. Não teve tempo de notar o vermelho opaco do semáforo, visto e respeitado por todos, menos ele.
O choque foi direto: a Hilux encostou, com força contida, no carro à frente. Pararam. O som seguia alto, reverberando como se não houvesse colisão alguma, apenas ritmo.
De todos os lados, olhares espantados recaíam sobre Gustavo. Ele, circunspecto, saiu do veículo como quem desce de uma tribuna. A caminhonete, como era de se esperar, não sofrera sequer um arranhão visível. Já o carro à frente, um sedan modesto e cansado, apresentava amassados na traseira, além de uma lanterna trincada.
O motorista, um homem simples, desceu em busca de explicações. Antes mesmo que abrisse a boca, foi recebido com um gesto.
Gustavo, impassível, apontou-lhe o dedo mediano da mão esquerda. Um gesto curto, frio, suficiente.
Sem dizer palavra, retornou ao seu trono de quatro rodas, girou a chave, fez o motor rugir, e, numa espiral de fumaça e borracha, cantou pneu e se evadiu. Como se a cidade lhe pertencesse. E, de certo modo, pertencia mesmo.
Embalado pelo estrondo de sua vitória cotidiana, Gustavo estacionou diante de um bar, daqueles de fachada duvidosa e clientela rotativa. Entrou com ares de conquistador. Puxou uma cadeira, pediu três doses em sequência e, sem pestanejar, virou cada uma como quem sela um pacto com os deuses da impunidade.
Comemorava, afinal, o triunfo silencioso de mais uma fuga. Nenhuma multa, nenhum arranhão no ego, apenas a certeza de que, naquela cidade, seu sobrenome era salvo-conduto.
Ao sair, já com o hálito embebido em euforia alcoólica, voltou ao carro. Ligou o motor. Havia algo no ar, talvez o recado do próprio destino. Logo à frente, luzes azuis tremeluziam: blitz policial.
Parado, afrouxou os ânimos. Desligou o som. Mantinha a calma dos que sabem seu lugar no jogo.
Um policial se aproximou.
— Bom dia, documentos do veículo e habilitação, por gentileza.
Gustavo acenou com cortesia fingida, puxando a identidade do bolso traseiro. O restante, improvisou:
— Serei franco, meu amigo. A identidade está aqui. Habilitação... receio que em casa a esqueci.
O guarda franziu a testa, pegou o documento, olhou a foto, depois o nome. Leu uma vez. Releu.
— Cavalcante...? É filho?
Gustavo sorriu de canto.
— Mais que isso, sou o neto.
O silêncio entre eles durou menos que um suspiro. O policial endireitou a postura, ajeitou o cinto, e devolveu o documento com as duas mãos, num gesto quase cerimonial.
— Tome cuidado, por favor. As ruas andam perigosas... o crime em alta.
Fez um gesto de cabeça, sinalizando liberação.
— Vá com Deus. E à família, um abraço fraterno.
Gustavo acenou como um diplomata de si mesmo. Engatou a marcha e seguiu, como se tivesse vencido mais uma guerra que nunca existiu.
A cada esquina, outras doses. Um gole para cada olhar que não ousava encará-lo. Seguia pelas ruas da cidade como um centauro moderno (meio homem, meio automotivo). Foda-se a faculdade - pensava consigo: Afinal, já tinha o que aprendera desde cedo: o poder não se conquista, mas se herda.
O telefone tocou. Na tela: Papai.
— Vá pra casa, filho. Vamos comemorar.
Impulsivo, atalhou pela contramão de uma movimentada avenida, ignorando o trânsito e os sinais. Logo estaria em casa, para alegria dos familiares, que o aguardavam. De súbito, colidiu com uma moto pequena, de cor vermelha. Um casal foi arremessado ao chão. Não hesitou: fez meia-volta e sumiu.
No dia seguinte, estampada na primeira página do jornal em que trabalhei:
“Casal de comunistas é derrubado por Hilux em legítima defesa”
“Motorista, ao ver-se encurralado, teria agido com bravura diante da iminência de um assalto. Segundo fontes, trata-se de neto de tradicional família araçatubense. O casal, infelizmente, veio a óbito. Autoridades descartam crime doloso. O caso será arquivado por evidente excludente de ilicitude”.
Por um tempo, o assunto repercutiu nas mídias e nas redes sociais.
Mais tarde, como sempre, as marcas do asfalto foram apagadas.
Vieram as eleições. A família Cavalcante soube capitalizar a narrativa, o jovem bravo, a defesa da ordem, o combate ao caos urbano, a luta contra o comunismo.
Gustavo se candidatou. Foi eleito vereador. Depois, prefeito. Com os anos, deputado.
Dizem, atualmente, que mira o Senado.
Isso eu não te falei, tudo bem? Bico calado.
Quanto a mim, sem pauta nem emprego, exceto essas palavras que rabisco ao relicário. Essa história desautorizada, escrita à meia-luz, como quem varre o pó de uma sujeira induzida a se esquecer.
E mais nada.
Romário Diniz – Araçatuba, 2020.
Carta encontrada aos fundos
no quarto
de uma casa abandonada.
Do autor,
se é que existiu,
não se tem notícia,
tampouco se é vivo
se é livre
ou se já partiu.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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