Por Thiago T. Canossa
Era um esgotamento da alma, desses que não se curam com férias, psicoterapia ou medalhas de mérito. Era um peso invisível, sedimentado ao longo de anos servindo ao Estado, enxergando a face mais crua do humano, lidando com o que resta depois que a moral implode e a esperança foge pelos ralos da realidade.
Policial civil havia mais de duas décadas, conhecia de cor o rosto da cidade. Sabia onde ela era bonita, e, principalmente, onde apodrecia. Aprendera a desconfiar de tudo e de todos. Pessoas desconhecidas. Conhecidas também.
Já não havia entusiasmo nos dias, apenas expediente. E expediente, para ele, significava manter-se vivo.
Foi por insistência do filho que resolvera ir àquela barbearia. “Pai, vai lá. O cara é bom. Todo mundo corta com ele. Até o sargento Mário vai.” A ideia o incomodava: a barbearia ficava num bairro onde já entrara em casas com mandado de prisão, já derrubara portas, já algemara pais na frente de filhos. Ali, fora chamado de “opressor”, “inimigo”, “assassino”. Não era território neutro.
Mesmo assim, foi. Armado, por precaução, claro. Nunca se sabe.
O lugar era simples e limpo. O cheiro do café recém-passado se misturava ao som distante de um samba que escapava de algum quintal vizinho. As conversas eram baixas, as risadas, contidas. Um dia pacificado, como costumam ser os dias que precedem as tempestades.
Ernesto sentou-se à espera. Observava tudo: homens tatuados, bonés virados, roupas largas: estéticas periféricas que para ele sempre estiveram associadas ao perigo. Não pegou as revistas disponíveis. Não aceitou o café. Preferiu manter-se alerta. “Pode estar batizado”, pensou. “Talvez alguém aqui me reconheça.”
Do espelho, porém, veio a primeira rachadura na sua couraça. O barbeiro, um homem negro, de barba e cabelo impecáveis, empunhava a navalha com a delicadeza de um artista. O cliente de olhos fechados parecia sonhar. A lâmina desenhava linhas precisas no pescoço, revelando, pouco a pouco, um rosto renovado.
Trinta e cinco reais. Sorriso satisfeito. “Próximo!”
Ernesto levantou-se como quem vai ao cadafalso. Circundou olhares, não encontrou ameaça, mas isso só o deixou mais inquieto. Sentou-se. As mãos apertaram as manoplas da cadeira com força, como se dali pudesse arrancar controle. Respirou fundo.
— Cheguei aqui por indicação. Espero que a obra faça jus ao nome — disse, com um riso irônico que era mais medo do que humor.
— Apare o necessário de ambos, com a liberdade franca de quem pleiteia a oportunidade rara de conquistar um cliente novo.
— Assim será. Aceita um café?
— Não, muito obrigado.
A recusa saiu automática, quase agressiva.
O barbeiro não comentou. Ajustou a toalha em torno do pescoço e inclinou-lhe a cabeça com firmeza suave. O zunido da máquina preencheu o silêncio. Ernesto tentou fechar os olhos, mas não conseguiu. Os anos o haviam treinado para a desconfiança (era um reflexo, não uma escolha).
O tempo passou devagar. O som da máquina oscilava entre hipnose e alerta. Clientes entravam e se assentavam, e cada nova presença reacendia a ansiedade. Homens barbudos, carecas, altos, fortes, gordos, magros, quase todos negros. “Uma cilada”, pensou. Sob a capa, a mão direita permanecia próxima à arma. “Nunca se sabe”.
Mas nada aconteceu. E, contra todas as expectativas, ele gostou do resultado.
Durante o corte, comentou sobre o filho que o havia indicado. O barbeiro sorriu ao lembrar-se.
— Guilherminho! Cliente especial, muito educado e solícito. Estudou com meu menino há alguns anos no fundamental. São amigos. Ou ao menos eram.
Ernesto, enquanto ouvia, matutava: “como aquelas crianças se conheceram? Viviam em mundos tão distintos, bairros distantes, classes sociais opostas”. Mas concluiu que o mundo era pequeno, e essas coincidências aconteciam. Não havia motivo para estranhamento.
— Passemos à barba — pediu, tentando soar natural.
Firmou novamente as mãos na cadeira. A navalha brilhou sob a luz do salão como ferro recém-forjado. Parecia mais uma extensão do corpo do barbeiro do que uma ferramenta. Aos poucos, Ernesto relaxava. Talvez pudesse confiar. Talvez.
Mas então seus olhos se ergueram ao espelho, e ali congelaram. A imagem refletida lhe pareceu inquietantemente familiar. Os olhos pretos, o contorno do maxilar, a postura calma. Sua mente treinada, acostumada a identificar rostos em meio ao caos, começou a trabalhar sozinha. “Eu conheço esse homem”, pensou. “De onde?”
“Lembrei!” — gritara em pensamento.
Tal qual o comando mais simples digitado em um sistema policial, a ficha veio à sua mente como se estivesse aberta ali, nas palmas de suas mãos.
FICHA INDIVIDUAL – SISTEMA POLICIAL Nome: LUCAS DOS SANTOS MENDES Idade: 17 anos Ocorrência: Porte de substância entorpecente – Art. 28 da Lei 11.343/2006 Data: 14/07/2010 Local: Viela 8 – Jardim das Pedras Status: Processo extinto por cumprimento de medida socioeducativa.
Lucas Mendes. Adolescente. Dois papelotes de cocaína no bolso esquerdo de uma bermuda velha. Medo e desafio nos olhos. Era ele. Tinha de ser.
Teve medo. Agora mais. Medo de ser reconhecido. Não podia ponderar o que se passava na cabeça que conduzia aquela navalha. Suava. Lembrara do café que não tomou, por sorte ou por tirocínio. Quis sair, mas conteve-se.
— Agora sim. O que achou? — perguntou o barbeiro, afastando a lâmina do rosto.
Uma mistura de sentimentos o atravessou. A precaução, aos poucos, fraquejava sob o peso da satisfação. Um novo rosto. Um novo homem. Como nunca antes se sentira.
Foi então que a porta se abriu. Uma mulher alta, de nobre porte, adentrou o local trazendo algo nas mãos. Ernesto voltou instintivamente as mãos à cintura antes de se levantar.
— Vai até tarde hoje, né, amor? — disse ela, dirigindo-se ao barbeiro. — Trouxe-lhe a janta. Bom trabalho. Te busco às dez.
E saiu.
Ernesto levantou-se. Ainda com as mãos na cintura, contou as notas com a mão esquerda, num esforço disfarçado, e pagou. Agradeceu. Saiu.
Lá fora, o vento da noite lhe tocou o rosto, à nova face, como ele mesmo, só que outro.
Metástase, metáfora ou metamorfose?
Um novo homem. Agora.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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