Opinião

O monstro do retrovisor

"No trânsito, no entanto, vige a impermanência, com o que tudo se transforma. Numa hora se vive. Por muito pouco se mata e se morre"
Da Redação
04/08/2025 às 19h32
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Por Thiago Torres Canossa

 

Esse divã em que me deito nem sempre foi tão duro. Já foi ninho de segredos e consolos. Dele não tive coragem de me desfazer. Trouxe-o pra casa quando me aposentei. Nisso vão-se os anos, em que o acompanhava silencioso nos seus vincos e suspiros. Embora velho, nele guardo intactos os relatos mais ocultos das pessoas que sobre ele se deleitaram. São memórias cravejadas, pacientemente ouvidas e relatadas ao longo de uma vida dedicada à psicanálise. O peso das abstrações afundou-lhe o estofado, como se o tecido ainda guardasse o eco das dores ouvidas. Deixei-o assim, original e sem reformas.

 

- Jogue fora essa coisa imunda, cheia de energia negativa – a esposa reclamava desde o dia em que o trouxera para casa. Morreu meses depois.

 

A coisa é que não é fácil a decisão de se aposentar. Uma vida de trabalho é história que não se esquece do dia pra noite. Na verdade, não se esquece nunca. A memória do ofício gruda na alma como cheiro de roupa velha. Como psicólogo, dei o sangue nos longos anos de estudos, menos por dinheiro e mais pela missão de compreender o comportamento humano atribulado pela mente que opera sem cessar. De todas as coisas no mundo, julgo mais misterioso o cérebro, responsável pelas decisões humanas e, consequentemente, pela transmutação da realidade ínsita das coisas. Em tema de alma, não interfiro e nunca interferi, ao menos no sentido espiritual do termo. A psicologia, desde os gregos antigos, muito antes de integrar os ramos das ciências modernas, propôs-se às reflexões sobre a psique (????), a alma ou o sopro vital. No antigo ocidente, sobre ela se debruçaram Homero, Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles. O oriente também teve suas luzes na antiguidade com Buda, Lao-Tsé e Confúcio. As reflexões passaram pela idade média, moderna e seguem o mister da compreensão respectiva até os tempos contemporâneos. Mas isso é coisa que se discuta em outra oportunidade. Não sou professor.

 

Hoje, bastou-me folhear uma pasta antiga para reencontrar, num pedaço de papel amarelado, chancelado pelo primeiro molde de minha assinatura, no começo da carreira, a lembrança de um paciente singular.

 

No prontuário clínico, um relatório antigo de Caetano Rocha, um dos meus primeiros pacientes. Tecnicamente, um relatório se integraliza com os seguintes elementos: identificação, demanda, anamnese, técnica, descrição, evolução, considerações, assinatura e carimbo do profissional. Deve ser objetivo e claro, sem julgamentos de ordem moral. Não estando mais obrigado às normas regulamentares da profissão, e não tendo muito mais o que fazer dos dias, rememoro o caso de Caetano, o Rocha.

 

O relatório é sucinto, embora o relato não o seja tanto. Rocha me procurara por indicação de Santiago, sobre quem conto em outra hora. Marcou uma consulta em horário apertado, dizendo que precisava de orientações. Na ocasião, disse-lhe que, antes, seria necessária uma avaliação. E assim foi. Chegou ao consultório em estado nitidamente avançado de ansiedade, numa espécie de agitação quase existencial.

 

- Tire os sapatos. Deite-se no divã. O que o aflige? – perguntei, como de praxe a todos os consultados.

 

- Preciso mesmo me deitar? – Rocha ponderou.

 

- Precisar não precisa. Mas importa pra que favoreça o estado de ânimo. Não se preocupe. Por lei, e pela ética profissional, nossa conversa será revestida de sigilo.

 

Respirando, acalmou-se e começou a falar, com a tessitura das palavras que tentarei reproduzir, como a memória mais distinta da qual não se esquece um coração tocado.

 

- Não sei o que me acorre, doutor. Sempre fui uma pessoa trabalhadora, tranquila e respeitadora dos demais. A disciplina e a instrução sempre foram pilares na minha vida, aprendidas com o exemplo de meus pais. Busco sempre a coerência empreendida, treinada e avaliada pelos estudos constantes, a fim de encontrar a permanência que insiste em me trapacear. Tenho emprego estável, conquistado sob o sol de muitas luas e um singelo patrimônio que me franqueia um pouco de dignidade. Porém, em certas situações, nas mais corriqueiras, ao me confrontarem a virtude prática das filosofias, me transformo. É como se em determinados átimos, entre a paz do dia que se inicia e o obstáculo que não espera a noite, eu me desfigurasse com a paixão dos que me contrariam.

 

Dei-lhe uma pausa e lhe ofereci um copo d’água. Continuou.

 

- Nunca dei chance aos vícios, embora tenha os meus meios de extravasar. Preencho a lacuna do medo com o ofício, estudando, trabalhando, e, se oportuno, conversando com as poucas pessoas que me permitem palestrar. Não jogo conversa fora, nem gasto saliva com a ignorância dos que vivem só pra gozar. Não me incomodo com quase nada, exceto quando saio pelo trânsito e me deparo com tipos de conduta difíceis de se acreditar. Há pouco aconteceu comigo. Sei que as pessoas são como são. Não sou distinto, tampouco melhor. Pior também não sou. Saio de casa para o trânsito munido da cautela por todos esperada. Paro no sinal vermelho. Dou seta nas manobras e respeito a velocidade permitida. No trânsito, no entanto, vige a impermanência, com o que tudo se transforma. Numa hora se vive. Por muito pouco se mata e se morre. Nunca vi amizades serem forjadas no trânsito. Na via, a paixão se aflora. Saio de casa, guiando conforme. Num instante, um velhinho à minha frente anda quase parando. Esses param, no meio da rua para decidir, pensar, conversar, sei lá. O que se passa? Pararam no tempo. Deviam mesmo era não guiar. Os motociclistas correm em êxtase, sem nem mesmo saber aonde chegar. Ultrapassam pela mão direita, avançam o sinal vermelho, não cogitam, nem pensam nas consequências. Gritam, xingam, esperneiam, aceleram e se distanciam. Juro que tento me segurar. O trânsito é outro mundo, com linguagem própria a quem sabe ler e respeitar. A maioria não sabe, ou não quer. A comunicação é pra poucos. Coisa simples: dar a seta com tempo hábil antes mesmo de virar. Isso é virtude. É compreender que outros virão a mensagem nos símbolos, aguardar e respeitar. É como um “obrigado”, “dá licença”, “por favor”. Não sabem diferenciar. Não sabem ler sinais. No meu caso, faço a seguinte interpretação: a pessoa quando entra no seu carro ou monta em sua motocicleta, veste-se de outra personalidade. A imagem, composta pelos atributos físicos e principalmente pelos elementos expressos à face, são assumidas pela personalidade do veículo. Quando vejo as atrocidades no trânsito, não julgo o condutor, qual muitas vezes não consigo ver. Julgo sim o carro, com os seus atributos. O design fronteiro assume as feições de um rosto, onde os faróis são os olhos e as linhas dão vida a expressões quase humanas. São coisas inanimadas, eu sei. Mas quando conduzidas, se erram, a raiva prontamente é contra o veículo. Compreende-me até aqui?

 

- Muito bem. Continue.

 

- Pois bem. Eu sei que em ocasiões distintas, fora do trânsito, poderia muito bem ser amigo desses péssimos condutores. Talvez se os conhecesse em um bar ou em uma cafeteria, jamais os julgaria como quando os vejo errando com o automóvel. No fundo, são pessoas boas, assim espero. Mas no trânsito, arrepia-me a possibilidade de lhe dizer a vontade que tenho de fazer contra esses santos. Doutor, eu... eu nutro ódio. E não é ódio retórico, desses que se diz da boca pra fora. É daqueles que latejam na carne, que sobem feito fogo da espinha até o rosto. Sinto vergonha de confessar isso. Mas há momentos em que não me reconheço. Não grito, não bato, não jogo o veículo sobre ninguém, mas... a vontade, meu Deus, a vontade vem inteira. E me toma.

 

Ele levava a mão à testa, como quem buscava apagar uma lembrança.

 

- Às vezes penso que vou ter um infarto. A raiva explode de dentro como uma bolha de óleo fervente. A boca saliva. As mãos suam. O coração pulsa no pescoço. E tudo isso por algo que, intelectualmente, sei que deveria ser irrelevante. Um carro mal posicionado. Um motociclista que costura por entre as faixas. Um ônibus que me fecha. São erros banais, eu sei. Mas o que me assusta é a intensidade.

 

Fez novo silêncio, e eu não o interrompi. Os olhos estavam vermelhos.

 

- Tenho consciência disso tudo, doutor. Leio, estudo, reflito. Sei que somos seres imperfeitos. Sei da falibilidade humana. Compreendo que o outro talvez esteja atrasado para o trabalho, doente, distraído, sofrendo. Sei disso tudo. E, mesmo assim, o instinto me toma. A indignação me rasga. É como se eu tivesse dois dentro de mim: um que entende e outro que reage.

 

Puxou o ar com força.

 

- Preciso de ajuda. Uma orientação. Um caminho. Porque esse estado de ânimo que me domina não combina com quem eu sou. Ou com quem eu achava que fosse. Começo a temer o que posso fazer se isso crescer mais um pouco. Às vezes, não me contenho. Outras, fico dias remoendo. E o que mais me inquieta é pensar que posso me tornar exatamente aquilo que mais condeno.

 

Dei-me por satisfeito. Atento, eu anotava tudo concentrado, tentando não perder os detalhes. Momentos de silêncio se entrelaçavam ao tiquetaque do relógio. Ergui os olhos para o paciente:

 

- Compreendo, Rocha. O seu mal é o excesso de instrução, que se torna incompatível com o estado natural das coisas no tempo em que estão. Não chamaria de incompreensão. Disso você não padece. Sua constante afinação com os méritos da evolução o distancia da mediocridade, o que, em tese, é bom. Mas na prática... simplesmente não.

 

Continuei.

 

- Não se preocupe. É muita criatividade para pouca alheia observação. Meu conselho? Diminua o ritmo. Pare com os estudos e com a leitura. Trabalhe muito mais e pense muito menos. Uma boa dose de ignorância diária abrandará os seus sintomas. Logo estará normal. E verá tudo com menos clareza.

 

Aparentemente aliviado, Caetano foi embora. Levava nos olhos a impressão de quem encontrara sentido, ou ao menos uma orientação prática para aliviar o peso do mundo. O tempo passou sem que ele me procurasse. Julguei, com certa vaidade de ofício, ter dado cabo àquele caso, ao menos até o dia em que recebi a notícia.

 

“Briga de trânsito. Motoqueiro arremessado ao chão persegue o infrator. Alcançao. Aborda-o. Aponta-lhe uma arma. Não atira. Mata-o aos socos e pedradas. E, segundo testemunhas, arranca-lhe os órgãos e lhe devora o coração”.

 

Diagnóstico? Síndrome de Clareza Insustentável. Moléstia rara, porém crescente. Acomete os que pensam demais em lugares que exigem pouco — e cobra caro de quem não sabe ignorar.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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