Opinião

O local de costume

"O espaço administrativo, então, é o palco perfeito para uma peça teatral: neutro, limpo, quase asséptico. Mas é só aparência"
Da Redação
23/06/2025 às 19h53
Foto: Divulgação Foto: Divulgação

Por Thiago Torres Canossa

 

Há algo de irônico na forma como um escritório preserva a ordem. Tudo milimetricamente disposto — pastas, arquivos, cadeiras simétricas, as telas apagadas dos computadores. Como se, ao fim do expediente, os objetos continuassem trabalhando sozinhos, mantendo a ilusão de que há controle. O espaço administrativo, então, é o palco perfeito para uma peça teatral: neutro, limpo, quase asséptico. Mas é só aparência.

 

Recordo-me do setor de recursos internos, ao fundo, junto ao vidro fosco que dava para o estacionamento. Sempre achei aquele canto mal iluminado, como se o sol também evitasse certos assuntos. Ali ficavam os funcionários mais silenciosos — os que digitam sem interrupções, os que entram e saem no mesmo horário e jamais esquecem o crachá. Talvez tenha sido por isso que me recordei dela hoje. Uma dessas figuras que passaram... discretamente: F.J.

 

F.J. estava por ali há uns três anos, talvez mais. Mulher metódica, de fala precisa, cabelo espesso, longos e tingidos, ocasionalmente preso, à moda funcional. Tinha cerca de um metro e setenta, pele clara, postura ereta. Não era de sorrisos largos, mas sorria — talvez por educação. Cumpria bem as tarefas, sem entusiasmo nem falha.

 

Contida, não usava se aproximar muito de ninguém, ao menos não de verdade. Estava sempre por ali, mas como quem observava, não como quem era parte. Nunca soube muito dela. Na verdade, ninguém sabia. Até que um dia... houve algo. Algo digno de nota. Não saberia dizer se aquilo foi um incidente, uma armadilha, uma cena ou dessas veladas respostas que a vida nos impõe, ao arrepio de todas as certezas... enfim. O fato é que começou com um bilhete. Mas não convém adiantar.

 

- Sempre cheguei dois minutos depois da hora. Nem antes, nem depois. Dois minutos. Um traço mínimo de rebeldia que ninguém percebia. A mesa era minha trincheira: limpa, funcional, sem enfeites. Nada pessoal. Jamais quis parecer acessível demais. Os colegas, que assim se consideravam, se cumprimentavam com exagero. Risos altos, cumprimentos sonoros, cafés compartilhados como se estivéssemos numa república. Eu preferia o silêncio. O silêncio me escutava melhor do que eles. Sabia que dificilmente seria promovida. Não sou dessas que se fazem notar. Mas também não sou incompetente. E não suporto ser ignorada por ser discreta. Foi então que reparei no bilhete. Estava sobre a mesa do chefe, dobrado de forma displicente. Azul, sem envelope. Talvez fosse algo comum. Ou talvez... não. Li. Não com os olhos — com a intuição.

 

F.J. era solteira. Discreta também nesse aspecto. Comportava-se com naturalidade entre os homens do escritório, sem afetação, sem distância. Respondia a comentários, fazia elogios contidos, às vezes dava risada — mas algo ali era cautela. Nunca se envolveu. Não se abria. E, ao que me consta, jamais teve qualquer relação visível com alguém da empresa ou de fora dela.

 

No entanto, por trás dessa harmonia cordata, havia algo mais difícil de descrever: um senso de superioridade mal resolvido. Era como se ela se contivesse a todo instante para não dizer o que realmente pensava de todos — como se lutasse contra a convicção íntima de que merecia mais, de que aqueles ao seu redor eram... menores.

 

Não acredito que ela soubesse disso com clareza. Mas era visível nos gestos. Nas expressões silenciosas de tédio, no olhar que escapava sempre pela janela, como quem se vigiava o tempo inteiro. F.J. desejava reconhecimento, brilho. Mas era ela própria o véu que se opunha à própria luz.

 

Poucos a notavam. Notavam sim... J.F.

 

J.F. era o oposto em tudo. Extrovertida, falava de si com naturalidade. Ria alto, sabia da própria beleza e não fingia modéstia. Tinha algo raro: a ausência de medo da traição. Era convicta de si. Sabia que não agradava a todos, mas ainda assim, todos se aproximavam dela. Ou queriam.

 

No fundo, creio que F.J. via em J.F. uma inimiga sem culpa. Alguém que poderia, sem esforço, lhe subtrair qualquer chance de subir um degrau. Não por malícia — mas por brilho.

 

Um dia, numa tarde particularmente caótica, encontrei sobre minha mesa um bilhete. Escrita direta, azul, letra firme:

 

"Reunião com João Ferreira, no local de costume, às 19h."

 

Nem cheguei a pensar muito. Ia sair antes. O dia tinha sido longo, com visitas externas e atrasos. Apenas peguei o celular e mandei uma mensagem rápida à J.F., que me era subordinada nessas ocasiões, certamente a autora daqueles escritos.

 

"Não vou conseguir. Vamos remarcar."

 

J.F. respondeu com um “Ok :)”. E foi isso. Saí na correria. O bilhete ficou. Não voltei à sala naquele dia.

 

- Entrei para deixar a planilha final do inventário sobre a mesa. Ele não estava. Luz apagada, tudo em ordem. Mas ali, na superfície limpa — o bilhete. Dobrado, de papel mais grosso, repousava como se me esperasse. Não resisti. Li.

 

"Reunião com João Ferreira, no local de costume, às 19h."

 

- João Ferreira. Inofensivo demais. Ou... conveniente demais. E essas iniciais? Por que “João Ferreira”? Quem é? Ninguém com esse nome trabalha aqui. E por que “local de costume”? Que reunião se faz fora do expediente? Foi como um raio. Não de clareza, mas de oportunidade.

 

- Naquela tarde, vaguei. Sala em sala, com passos suaves, sem levantar poeira. Conversas banais, sorrisos sem intenção. Até que alguém tocasse em assunto qualquer sobre a chefia — e então, eu apenas sugeria: "Curioso aquele bilhete na mesa da chefia... ‘João Ferreira’ às sete da noite?" "Estranho, né? Nunca ouvi falar... Será que não é um código? Sei lá..."E o local de costume? Isso não soa meio... íntimo?"

 

- Insinuei pra não dizer, como quem apenas pensa alto. Certas coisas só são ditas nas entrelinhas, como quem compartilha uma dúvida casual. Mas era assim que as minhas ideias ganhavam asas — não pela força, mas pela névoa. E quanto mais falavam, menos eu precisava dizer.

 

Nos dias que se seguiram, nada foi dito abertamente. Não havia motivo, nem prova. Apenas olhares mais demorados, sorrisos que hesitavam antes de surgir, conversas interrompidas quando alguém se aproximava — principalmente quando era ela.

 

J.F. parecia não perceber de imediato, embora fosse claro, a desconfiança geral repousava sobre sua pessoa. “João Ferreira”, ou “J.F.”? Ainda assim, J.F. continuava circulando entre os setores, espalhando sua energia viva, como sempre. Mas havia algo de novo — uma espécie de campo de tensão que a precedia. Era como se sua presença agora produzisse sombra, e não apenas luz.

 

- Naquele dia, vi-a sozinha na copa, o olhar perdido na xícara. Pela primeira vez, não falava com ninguém. O riso não vinha. A voz estava... menor. Parte de mim quis se aproximar. Dizer algo. Mas outra parte — mais forte, mais funda — disse: "Agora você me vê, J.F. Agora sabe que também posso existir."

 

Dizem que, por força de uma velada e indomável curiosidade, sem comunicar, F.J. decidiu. Esperou até o fim do expediente, quando as cadeiras já estavam vazias e o zumbido dos computadores silenciava. Anunciou às poucas vozes que restavam:

 

— Vou demorar um pouco para finalizar o relatório de inventário. O prazo está apertado. Podem ir. Irei em pouco.

 

E assim, com o corredor vazio e o cheiro de café frio pairando no ar, dirigiu-se à sala de reuniões — “o local de costume” que todos evitavam após as dezoito horas. Ali, emboscou-se atrás da porta entreaberta, recortada pela luz fraca do corredor. Contam que ficou imóvel, respirando em silêncio, até ouvir o clique suave da maçaneta.

 

J.F. entrou, impecável em seu terno cinza, cada passo medido. Parou no centro da sala, olhou em volta, como se testasse o eco dos próprios ossos. Depois, sentou-se na cabeceira, ereta, aguardando sem pressa. Percebeu, então, que não estava só. Um celular tocou nas imediações da entrada da sala. Dirigindo o olhar, viu F.J. em claro constrangimento, como quem fora descoberto em circunstâncias alheias à própria vontade.

 

— Você esperou até o fim. Achei que não apareceria.

 

O silêncio que se seguiu foi espesso. F.J. aproximou-se, olhos fixos, as mãos escondidas. J.F. apenas ergueu o olhar e disse:

 

— Tudo o que aconteceu até agora foi seu teatro. Mas aqui, no escuro, podemos ser honestas. O ódio que você sente é só amor mal resolvido. Sua sede por status e poder não se ocultam ante a minha luz. A meu ver, seus modos não passam de um vazio interior. Venha... Eu te ofereço paz.

 

As palavras ficaram suspensas, e o tempo se dissolveu em algo anterior à decisão.

 

F.J. respirou fundo, ergueu-se e, num impulso que unia raiva e luxúria, aproximou-se de J.F. Sentou-se. O tempo parou. J.F. a olhava fixamente, como quem oferta paz escondendo um punhal velado sob o manto das intenções. Um silêncio abrupto. J.F. tocou-lhe as alvas mãos. Àquele tempo, F.J. sentiu esvair toda a heroica coragem de quem trama, mas não a concretiza, a não ser em palavras. Retribuiu-lhe o olhar. Quis lhe falar algo, despejar os seus males em vingança aos óbices criados pela própria mente. De súbito, jogou-se violentamente contra J.F., agarrou-lhe o pescoço. Apertando-o, beijou os lábios de J.F. com urgência, como o sedento sem escolha ante o pote de água contaminada, sem ver opção, buscando talvez apagar a chama das feridas, lançando fogo aos desejos reprimidos. J.F. correspondeu, mas não com suavidade: o beijo teve o peso de um teste.

 

Na manhã seguinte, tudo normal. O setor recomeçou como sempre: pastas alinhadas, xícaras na mesa da copa, murmúrios de prazos. F.J. sentou-se em sua escrivaninha e abriu a gaveta para tirar o estojo de canetas. Ali, dobrado entre papéis antigos, encontrou o mesmo bilhete, ao qual fora adicionado algo a mais.

 

"Reunião com João Ferreira, no local de costume, às 19h." (J.F.)

 

Ela hesitou, o olhar fixo no papel. Nada mais precisaria ser dito.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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