Por Jair Moura
O trágico acidente em Araçatuba (SP), envolvendo um juiz aposentado e a morte de uma ciclista, não é apenas um caso isolado, teve repercussão nacional; ele se ergue como um espelho incômodo que reflete uma das maiores chagas de nossa sociedade: a aplicação de "dois pesos e duas medidas".
A cidade de Araçatuba, com sua comunidade atenta e vigilante, observa cada passo desse processo, exigindo que a balança da Justiça não penda para o lado do privilégio, mas sim, para a isonomia inegociável.
"Dois Pesos e Duas Medidas":
A CORROSÃO DA CONFIANÇA SOCIAL
A expressão "dois pesos e duas medidas" é mais do que um ditado popular; ela descreve a prática perversa de aplicar critérios distintos para situações idênticas, dependendo de quem está envolvido.
É o veneno silencioso que corrói a fundação da Justiça, transformando direitos em favores e a lei em um instrumento maleável nas mãos do poder e da influência.
A ANATOMIA DA INJUSTIÇA SELETIVA
Quando a justiça opera com "dois pesos e duas medidas", ela se manifesta de formas sutis e brutais:
Para os privilegiados:
A lei se torna mais flexível, as interpretações mais benevolentes, os processos se arrastam até a prescrição, e as penas, quando aplicadas, são mais brandas ou convertidas em alternativas.
Há uma presunção de inocência que se estende para além do razoável, e a autodefesa é facilitada por recursos ilimitados.
Para os desfavorecidos:
O rigor é implacável, a presunção de culpa é quase imediata, a celeridade processual é imposta sem trégua, e as penas são aplicadas em sua plenitude, muitas vezes com a máxima severidade.
A defesa técnica pode ser precária, e o acesso a recursos, limitado.
Essa disparidade não apenas reflete, mas amplifica exponencialmente as desigualdades sociais existentes.
Ela cria um ciclo vicioso onde o poder se perpetua através da impunidade, e a vulnerabilidade se aprofunda sob o peso de uma justiça implacável.
O DIREITO DE DEFESA:
UMA GARANTIA UNIVERSAL, NÃO UM PRIVILÉGIO
É imperativo reafirmar que, mesmo diante de acusações graves e de grande comoção social, todo indivíduo tem direito à ampla defesa.
Este é um pilar inabalável do Estado Democrático de Direito, consagrado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
O direito ao contraditório, à defesa técnica por advogado e à apresentação de provas são garantias que não podem ser negadas a ninguém, independentemente de seu passado, cargo ou posição social.
No entanto, é crucial distinguir o direito fundamental à defesa da concessão de privilégios indevidos.
A defesa deve ser ampla, mas dentro dos limites da lei e sem qualquer tratamento diferenciado que coloque o acusado acima dos demais cidadãos.
O CASO DE ARAÇATUBA SOB A LUPA DA ISONOMIA
O fato de o condutor ser um magistrado aposentado adiciona uma camada de complexidade e sensibilidade ao caso.
A posição anterior do investigado não pode, em hipótese alguma, influenciar a apuração dos fatos ou a classificação jurídica do crime.
Informações preliminares, como a suposta ingestão de bebidas alcoólicas na noite anterior ao acidente, tornam a investigação ainda mais crucial.
A sociedade espera que seja determinada com rigor se houve dolo eventual ou culpa consciente , elementos que podem alterar significativamente a tipificação penal – se homicídio doloso ou culposo .
O Poder Judiciário, neste caso, tem um dever moral e legal de:
Investigar profundamente todas as circunstâncias do acidente.
Analisar rigorosamente o estado do condutor no momento dos fatos.
Classificar corretamente o delito, sem influência da posição do investigado.
Garantir transparência em todo o processo investigativo.
A VIGILÂNCIA DA SOCIEDADE ARAÇATUBENSE:
UM TESTE PARA AS INSTITUIÇÕES
A sociedade de Araçatuba, profundamente impactada pela tragédia, está atenta.
Ela compreende que este caso é um teste decisivo para a credibilidade do sistema de Justiça.
A expectativa é clara: que a lei seja aplicada com a mesma rigidez e imparcialidade que seria dispensada a qualquer outro cidadão.
Qualquer suspeita de tratamento privilegiado comprometerá a credibilidade do sistema de Justiça e ferirá o princípio constitucional da isonomia.
Qualquer indício de tratamento privilegiado, de uma balança que pesa de forma diferente para quem já ocupou um cargo de poder, seria um golpe devastador na confiança pública.
A erosão da confiança nas instituições é o preço mais alto a ser pago quando a justiça falha em ser verdadeiramente cega.
AS CONSEQUÊNCIAS DA INAÇÃO
Se o sistema de Justiça permitir que a cultura de privilégios se perpetue, as consequências serão profundas:
Erosão da Legitimidade: As leis perderão seu poder moral, e a obediência se tornará uma mera submissão forçada, não um ato de respeito ao pacto social.
Ceticismo Generalizado: A população desenvolverá um cinismo profundo em relação à Justiça, acreditando que "só os fracos seguem as regras" e que a impunidade é o destino dos poderosos.
Fragmentação Social: A divisão entre "nós" e "eles" se aprofundará, alimentando ressentimentos e minando a coesão social.
Descrença na Democracia: A própria ideia de uma democracia onde todos são iguais perante a lei será questionada, abrindo espaço para discursos que deslegitimam as instituições.
A Urgência da Isonomia: Um Chamado à Responsabilidade
O caso do juiz aposentado em Araçatuba é, portanto, mais do que um processo judicial; é um chamado à responsabilidade para todo o sistema de Justiça.
É a oportunidade de demonstrar, na prática, que a Constituição Federal não é apenas um conjunto de artigos em um papel, mas um guia vivo para a construção de uma sociedade justa, que ninguém está acima da lei ou perpetuarão a cultura de privilégios que tanto prejudica nossa democracia.
A família da vítima e toda a sociedade araçatubense merecem uma resposta à altura dos princípios constitucionais que juramos defender.
A justiça verdadeira não conhece sobrenomes, não lê carteiras de identidade, não calcula patrimônios.
Ela pesa apenas atos e consequências, com a mesma balança para todos.
Que este caso sirva para reafirmar que, em uma democracia plena, nenhuma autoridade está acima da lei.
A igualdade perante a lei não é um ideal distante, mas uma exigência diária, especialmente quando os olhos da sociedade estão tão atentos.
Jair Moura é advogado criminalista e membro da Abracrim-SP
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