Por Jonathas Magalhães
Imagine se você alugasse um prédio e descobrisse que dentro dele funciona uma rede de tráfico. Como locador, você seria responsabilizado. Agora, por que as plataformas digitais que "alugam" seus espaços virtuais para criminosos não enfrentam a mesma responsabilização?
A denúncia do youtuber Felca sobre a exploração e sexualização de crianças nas redes sociais não deveria ser uma surpresa. O que surpreende é que precisamos de um humorista para despertar a consciência sobre algo que deveria ser óbvio: o que é crime na vida real não pode ser tolerado no ambiente digital.
O Paralelo Histórico da Televisão
Décadas atrás, a televisão brasileira passou por um processo civilizatório de regulamentação. A propaganda de bebida alcoólica destilada foi restrita ao horário noturno, os comerciais de cerveja ganharam a obrigatória advertência "beba com moderação", a publicidade de cigarros foi completamente banida e os brinquedos não podiam mais ser anunciados com animações enganosas que prometiam movimento onde não existia.
Ninguém gritou "censura" quando essas medidas foram implementadas. A sociedade entendeu que regular não significava limitar a liberdade de expressão, mas proteger grupos vulneráveis - especialmente crianças - de práticas comerciais predatórias.
A Confusão Conceitual Brasileira
No Brasil, existe uma perigosa confusão entre liberdade de expressão e liberdade de exploração. Quando se fala em regular plataformas digitais, imediatamente surge o discurso de que isso seria uma ameaça às liberdades democráticas. É uma cortina de fumaça que beneficia apenas quem lucra com o caos.
A teoria da janela quebrada demonstra que ambientes sem regras claras tendem a degradar rapidamente. No mundo digital, essa degradação não quebra apenas vidros - destrói infâncias inteiras. Cada algoritmo que recomenda conteúdo inadequado para menores representa uma janela quebrada que facilita o caminho para predadores.
O Algoritmo como Facilitador Criminal
A pesquisa de Felca revelou algo que os especialistas em comportamento digital já sabiam: os algoritmos das plataformas podem ser facilmente condicionados para distribuir conteúdo que sexualiza crianças. Em poucos cliques, uma conta nova pode ser direcionada para comunidades onde circula material de exploração infantil.
Isso não é acidente. É o resultado previsível de sistemas projetados exclusivamente para maximizar engajamento, sem considerações éticas. As plataformas possuem tecnologia sofisticada para detectar violações de direitos autorais em segundos, mas alegam incapacidade de identificar conteúdo que explora menores.
A Responsabilização das Plataformas
O conceito de responsabilidade civil por danos demonstra que quem cria condições para o dano deve responder por suas consequências. As redes sociais não são meros facilitadores neutros - são agentes ativos que direcionam, amplificam e monetizam conteúdo.
Quando uma plataforma permite que algoritmos entreguem sistematicamente conteúdo infantil para usuários com histórico suspeito, ela não está apenas hospedando - está facilitando. E facilitação de crime é crime.
O Despertar Tardio
A repercussão do vídeo de Felca expôs uma contradição nacional: a mesma sociedade que aceita regulamentação para televisão, publicidade e medicamentos resiste à ideia de regular o ambiente onde suas crianças passam horas diárias.
Talvez precisemos dessa dissonância cognitiva - um humorista fazendo jornalismo investigativo - para enxergar o óbvio. Não estamos falando de censurar opiniões políticas ou debater ideológico. Estamos falando de proteger crianças de predadores que usam a infraestrutura digital para crimes reais.
A Urgência da Ação
A declaração do presidente da Câmara, Hugo Motta, de que o tema será pautado esta semana é um primeiro passo. Mas é preciso que a regulamentação seja efetiva, não apenas simbólica.
Necessitamos de marcos regulatórios que estabeleçam:
Responsabilização objetiva das plataformas por conteúdo que explora menores, independentemente de moderação prévia. Se lucram com o engajamento, devem responder pelos danos.
Transparência algorítmica obrigatória para demonstrar como o conteúdo é distribuído e quais salvaguardas existem para proteger menores.
Multas proporcionais ao faturamento das empresas, não valores irrisórios que se tornam custo operacional.
Obrigatoriedade de ferramentas de controle parental efetivas e de fácil implementação.
A Falsa Dicotomia
Regular plataformas digitais não é escolher entre liberdade e segurança. É reconhecer que liberdade sem responsabilidade é anarquia, e que direitos individuais terminam onde começam os direitos de crianças vulneráveis.
A televisão foi regulada e continuou sendo veículo de entretenimento e informação. As redes sociais podem manter sua função de conexão social enquanto protegem seus usuários mais vulneráveis.
O Momento da Verdade
O vídeo de Felca fez mais do que denunciar crimes - expôs a hipocrisia de uma sociedade que regulamenta tudo, exceto o ambiente onde suas crianças estão mais expostas. Se precisamos de humoristas para falar sério sobre proteção infantil, talvez o problema não esteja apenas nas plataformas, mas na nossa própria escala de prioridades.
A pergunta que fica é: quantos outros "Felcas" serão necessários para que a proteção de crianças deixe de ser piada e se torne política pública séria?
O momento de agir é agora. Não quando a próxima denúncia viralizar, mas antes que mais uma infância seja destroçada pela negligência regulatória que confunde lucro com liberdade.
Jonathas Magalhães é publicitário, especialista em comunicação pública há 25 anos e fundador da Pública On. Acredita que política sem proximidade não é política — é administração à distância
** Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação