Opinião

Metafísica da insônia

"O sono é imprescindível ao dia vindouro"
Da Redação
15/09/2025 às 19h14
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Por Thiago T. Canossa

 

No silêncio arrebatador de uma madrugada sem fim, os olhos arregalavam insistindo na contramão das necessidades fisiológicas mais aparentes. O sono é imprescindível ao dia vindouro. A mente operava em ritmo fabril, chamando-me à vocação desacreditada em escrever.

 

Dizem que o chamado é inescapável.

 

Há quem trabalhe por amor, por necessidade, por clamor, por desespero. Há quem trabalhe por vocação. Dizem que escrever não é trabalho. Há quem gostaria de mandar o patrão às favas pra viver os sonhos. Há quem só sonhe. Há quem sonhe e realize. Nesse caso, um abismo indescritível se impõe entre a vontade e a ação que concretiza. O resto são palavras vazias. Há quem tenha vocação ao mistério das palavras. Há quem nelas acredite, embora nelas não se vocacione, por falta de talento. Talento é coisa polêmica. Não é dom, mas afinidade proporcionadora de sentido. O sentido chama à vocação. Também não basta. Tem que começar. Vencer a si mesmo na figura dos próprios medos e se enfrentar. O sono não viria. A madrugada dava os primeiros indícios com o silêncio que a conduziria. A cabeça fabulava fórmulas ambicionadas e desconhecidas. Todos dormiam. Eu acordava.

 

Na contramão dos hábitos regularmente tido por saudáveis, levantei-me aos bocejos, abri o armário da cozinha, na esperança de uma ideia, que não veio. As ideias são assim. Quanto maior a expectativa, maior o vazio. Encarei os objetos à minha frente. Copos, taças, canecas. Nada relevante ao mundo das ideias. Fechei-a sutilmente, na esperança de um pensamento ao átimo daquele instante.

 

A geladeira. Ah, a geladeira... Palco perfeito para a pausa entre breves reflexões. Quase um ritual. Ali seria certo. Aos lentos e ritmados passos, pousei a mão sobre a maçaneta. Abri. A luz interna se acendeu. Não procurava por comida, posto que fome não tinha. Aliás, come-se mais por emoção que por necessidade. Minha fome era de objetos. Não a comida em si, mas os significantes naqueles contidos, com as cores, os sulcos e todos os elementos integrantes dos seres que habitam cativamente o refrigerador.

 

No fundo, procurava pelas palavras que representavam aqueles objetos. Essas sim, fontes primárias de inspiração. O faminto não concede tempo a especulações insignificantes sobre o que vier a ser comido. Basta-lhe olhar o objeto de desejo, cheirá-lo, e, se em condições condizentes, quanto antes devorá-lo. A coisa é distinta ao poeta. A cabeça funciona diferente. Nem melhor e nem pior. É ponto de vista. Há quem prefira isso ou aquilo. E gosto não se discute. Tá além da alheia compreensão.

 

Passaram-se alguns minutos. A geladeira ainda aberta. Leite, laranjas, queijos, carne, vidros de temperos e condimentos. Com a técnica devida, se juntados, um belo prato, talvez exótico, de comida. Ao faminto, é claro. Ao poeta, uma fábula, uma poesia, uma descrição acerca de um personagem faminto. Alguém que há pouco tenha praticado um homicídio, abrindo a mesma geladeira, pensaria em coisas distintas. A mãe que acabara de perder um filho, comeria a fugir do seu suplício. E por aí vai. As possibilidades são infinitas. Não a mim. Ao menos naquela ocasião. A laranja solta ali gelada, parada, esperando para ser comida, talvez tivesse medo, preferindo morrer ao frio do que na boca de um estrupício. Achei fraco. O leite branco, brando, daria uma bela história sobre a vaca que a tenha produzido. Um garrote pelo resto da vida desnutrido que viria a ser mendigo, desmamado pelo produtor ambicioso que secou a fonte para enriquecer-se com aquele líquido. Fechei a geladeira.

 

O amanhecer tardava. Ainda na cozinha, sobre a pia, uma gaveta. Garfos, facas, colheres, canudos e uma caneta. Tomei-lhe a posse. Da caneta. Um sinal, talvez, de que as ideias viriam com o ato, bastava escrever. Pensar, nesse caso, seria mera consequência da correta empunhadura sobre o papel em branco. Também não tinha. Um rolo de papel higiênico talvez me concedesse o símbolo necessário. Encontrei-o, novo e limpo. Mas era fácil. Escrever o que? Na lixeira havia mais, restos marcados de excrementos. Escrever-lhes às margens as misérias do que realmente somos. A imagem é forte. Coragem faltava. Loucura? É ponto de vista.

 

Deixei de lado essa ideia. Coragem faltou. Na sala, uma vela fria, apagada, junto às cinzas. Não se usam mais as velas. Risquei. Acendi um palito de fósforo. Observei-lhe atentamente os efeitos. Uma chama se iniciava. Daquelas coisas tão corriqueiras que jamais se lhe concede uns segundos para refletir a respeito. O fogo, que há milênios fora aura tecnologia. Hoje, banalidade que se encontra em qualquer gaveta sobre a pia. Observei. Aquela luz lutava por se manter acesa ante os leves sopros da respiração. Em instantes apagaria, deixando as marcas de fuligem na madeira combusta pra se descartar inútil. A inutilidade tem seu preço, mas também tem seu significado. Ponto de vista. A evitar seu fim, conduzi o fogo, como quem concede luz às trevas da ignorância. A vela se acendeu. Apaguei as outras, elétricas. Um cenário irrompeu. As ideias são assim. Demandam paciência a encontrá-las. Estão sempre à volta, mas se ocultam aos que não persistem.

 

O relógio marcava três horas e trinta e três minutos. Aquele mesmo horário se repetiria ao longo das noites no trajeto infindo da humanidade, pensei. Nunca dantes havia pensado nisso. Se dormindo estivesse, isso me escapava e nunca mais me seria dada outra mesma oportunidade. Talvez a oportunidade de outros pensamentos, mas não aqueles. Não aqueles mesmos. Os fatos da vida não são aleatórios. Dependem de fatores internos e externos nem sempre escolhidos. Causa e efeito, diriam. Aquela chama, por exemplo, tem por causa imediata a conduta humana voluntária de iniciá-la. Não se lhe dispense outras causas. Perder o sono também é causa. O sono perdido lançara mão de uma ideia encontrada, causa da chama remota e mediata.

 

A imprudência não escapa. Um lapso de conduta descuidada daria força à chama desregrada, um incêndio, coisa perigosa, que queima e mata.

 

Viver é como aquela chama. Balança, entorta. Um breve sopro nos apaga. A folha em branco. Nada. O nada também. É ideia das melhores. Dele tem-se o tudo, que por pouco, num descuido, a estaca zero, o descomeço, uma praga.

 

A chama aquece e ilumina. Franqueia luz e sombra. O Barroco nisso se inspirou. Dualidades. Braco e preto. Bem e mal. Céu e trevas. Sol e temporal.

 

Da escuridão na sala, curioso como tal, a sombra ampliava meu felino. Levantou-se para ver de perto aquele espetáculo: a caneta, o papel, a folha em branco e o perdido menestrel. A lembrança veio com seus movimentos suaves. Lembrei-me de um fato. O gato adotado que caminhara por doze quilômetros, adentrara o velório do tutor recém-matado. Deitou-lhe sobre o corpo frio, mudo em estado avançado, lambeu-lhe a face, como quem diria: “Despeço-me, eis meu último agrado”. Choraram os convidados.

 

Aquilo veio-me à mente. Não sei se foi verdade, ou estória traquejada. A questão é que as ideias vêm, bastando-nos rasgar as horas e os calendários. Algo inda faltava. Um nexo causal que conectasse todas aquelas palavras vivas, com coesão e coerência, numa estória, real ou falsa. Sem falar no título. Há que os dispense. Não é meu caso.

 

No relógio, a manhã se aproximava. O sono perdido, finalmente me encontrava. O papel em branco, sobre o qual nada rascunhara. Decepção. Hoje não. Talvez essa seja a ideia: esquecer a mania de produção, acordar em plena noite abatido, causa remota para a compreensão de coisas simples e ignoradas, porém ricas em sentido.

 

As ideias são assim. Dispensam expectativas. Insurgem-se contra as cabeças operosas, aproximam-se no vazio de mim. Talvez não me compreenda. Mas isso não importa. Basta que eu me busque e, desentendendo, me entenda. Desencontrei a glória. Construí novas imagens, um pedaço de paz ao tesouro da memória. Coisa de poeta. Ponto de vista. Apaguei a vela. Voltei à cama. Fechei os olhos, lembrando-me a não estória.

 

Não inventei, não produzi não escrevi. Só mais uma noite.

 

Vivi, pensei, dormi.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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