Por Thiago T. Canossa
Como todos vocês, sou criatura. Inconcebido e quase filho, não fosse o incerto inesperado dos eventos que me acometeram, impedindo-me os planos larga e longamente rascunhados para a vida em missão que me aguardava. Tão naturais quanto o fogo e o vento, são os eventos do planeta terra, dos quais não posso me lamuriar, posto que não os vivenciei. Ressinto-me dos homens, criaturas mágicas, munidas do potencial dos céus, que tudo detêm: a terra, sua morada, o corpo com seus extraordinários órgãos, os olhos que veem, a mão que tateia, as pernas que andam, as roupas que os protegem, os sonhos que os projetem, as oportunidades a serem conquistadas, e acima de tudo, a vida, com o que só se vive, chora, sorri e compartilha.
Há tempos, de longe vejo tudo isso. Não me ressinto. Fosse-me dada a oportunidade, faria tudo diferente. Aqui, a consciência é pura. Mas os homens são inclementes. Tudo planejado. Teria início em um breve lapso, num átimo de porém aos vivos ignaros, conscientemente inconsequentes, que vivem aos desperdícios, indiferentes.
Dos meus superiores, não em ordem hierárquica, mas em experiência, fui instruído sobre as cores, os amores e, acima de tudo, sobre as dores que os homens a si impunham quando já avançado o estado de ignorância. Esse que, não é de todo mal, como se dá entender o sentido vulgar da própria palavra. Refiro-me à ignorância em sentido estrito, aquela oriunda do desconhecimento puro. O contrário é a maldade, ou, no mínimo, a imprudência. Essa, por si só, é a ausência do cuidado possível, fonte da maioria dos males.
A vida é cheia deles. Disseram-me que o mal maior é o que se confere ao outro, que o mal a si não é bom também, embora o seja em outro grau de aferição.
Alguns nascem oportunos. Outros, a muito custo, precisam encontrar o prumo perdido ao labirinto, lutando sofregamente com a força do suor revigorado pela mente, sangrando pelo próprio punho. Seria o meu caso. Ainda assim, em meu projeto, viriam as manhãs de olhos inchados, o café morno, o caderno rabiscado no colo da mãe. Deitar-me-ia no sofá como as crianças que sonham com planetas distantes, riria das formigas, dos gatos, dos erros de ortografia. Teria febres. Teria medos. Andaria à bicicleta, ironicamente, a mesma que hoje jaz avariada ao lado de um muro fosco e calado.
No princípio que viria, deu-se o fim.
Não fui abortado, nem por escolha, tampouco por falência biológica. Fui arrancado da própria esperança por um pedaço de lata envernizada, guiada por insolentes mãos alcoolizadas e olhos que já não viam. O causador, um homem dito nobre, de juízo entorpecido. Magistrado. Nesse ocaso, por força do ofício ao longo dos anos exercido, julgou-se acima da vida. Ao menos, da minha. Nesse sentido sendo, por força do ocorrido lamentado, posso dizer que sim, fui abortado.
Fui avisado. Daqui de cima, não acreditava no que via. Os olhos que não os tinha, lacrimejaram. Aquilo realmente acontecia? Um corpo ao pé da quina, quedado à avenida movimentada, ao sol do meio-dia. Sob o sangue, o corpo inerte daquela que minha jovem mãe um dia seria. Cheia de sonhos, ambições, resiliência, humor e intensa alegria. Voou sem asas. Não voltaria. Os presentes, estupefatos viam qual não criam: a bicicleta custosamente adquirida arremessada, não sem antes que ela, a mulher que ao colo me carregaria, ao solo, fosse atropelada. Com isso, sem ela, deixei de ser. Não pude mais querer.
O que pesa não é meu fim, posto que não começara, mas a inutilidade duma alma experimentada, ora corrompida, ceifando uma vida com a imprudência típica das muitas oportunidades. Fosse uma tragédia, vá lá. Mas é farsa. Os homens lutam pelas honrarias, juram proteger a vida, velando pela justiça, e transformam-se em executores da própria vaidade sempre quista.
O Estado chegou, prendeu, documentou. Fotografou. A Justiça: soltou.
Ao arrepio das leis, tiraram-me a oportunidade. A pior maldade faz morada naquele que conhece e fraqueja contra as luzes da sobriedade.
O crime é conduta. É escolha deliberada, quase sempre consciente que se transmuta nos prazeres da infidelidade. Se esconde atrás de um currículo e a culpa é desculpa para rir ao lado de uma mulher nua, enquanto o alheio sangue, sem mais volta, jorra solto pelas ruas. Desse jeito, prefiro mesmo é nascer na lua.
Eis o desabafo. Jamais em desacato. Sou o filho duma vida morta, que não nasceu. De perfil inominado, eis meus fatos, mediante os quais a rogo, ó Grã-Justiça, fazei-me instrumento crasso, pra que um dia possa ver os homens que nos julgam, vassalos que respondam com o próprio sangue, pelos ignaros atos.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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