Por Thiago T. Canossa
Andava pelas ruas sem destino certo, movido por uma coragem antiga, há muito sonhada, mas sempre barrada pelo medo do julgamento. Porque é assim: no fundo, todos somos juízes, donos de razões que nem conhecemos, distribuindo sentenças silenciosas com o olhar, punindo quem não se ajusta à régua moral e estética que herdamos de algum lugar.
Cleiton Sabiano era um jovem mediano. Nem aquém, nem além das expectativas que o mundo lhe impunha. Não julgava ninguém, embora soubesse que era julgado. Não devia, não cobrava, não era herói, tampouco vilão. Vivia com poucas ambições, e isso lhe bastava. O importante, repetia para si, era ser honesto, o resto seria consequência.
O nome, seu pai lhe dera com intenção. Prenome simples, sobrenome com propósito. Ávido leitor das doutrinas socráticas, o velho acreditava no peso das palavras, sobretudo quando cravadas na identidade de um filho. “Sabiano”, dissera, “porque o peso do ‘sábio’ é demais para um homem. Que carregues o saber, não a vaidade de possuí-lo.”
Sempre que podia, o pai discursava:
— Veja, meu filho: há quem queira ser inteligente e quem, de fato, o seja. Há quem lute por ser intelectual e quem, simplesmente, é. Uns querem ser atletas, empresários, funcionários do governo, estetas, modelos... A vida humana, no fundo, é uma guerra por rótulos. Poucos querem ser. Muitos querem parecer. Sabiano, busca o saber. Não para gritar teorias vazias ao mundo, mas para praticar, sem alarde, a tua fome de conhecer.
Cleiton guardava aquelas palavras no peito como se fossem bússola. Ainda assim, cada esquina que cruzava lhe mostrava o oposto: um mundo que não sabia, ainda assim julgava; um mundo que não era, mas fazia questão de parecer.
Tentava. Na escola, os colegas já exibiam as primeiras amostras de uma competição sem fim. Grupinhos se formavam, movidos por interesses tolos e instintivos, liderados por quem não tinha tamanho nem consciência do que fazia. Cleiton observava tudo com certa indiferença. Silencioso, com o semblante de quem pensa mais do que fala, era tomado por lerdo, mudo, esquisito. Mas a cabeça trabalhava.
Observava cada um daqueles pequenos principiantes da vida e os comparava com os mais velhos. Não conhecia muitas pessoas, é verdade, mas tomava como referência o comportamento dos familiares e amigos dos pais. Além disso, conhecia muita gente desprovida de carne e osso: personagens de livros, filmes, desenhos e até apresentadores de telejornal lhe forneciam modelos de conduta, com os quais tentava parafrasear os colegas.
Não sabia ao certo por quê, mas os personagens lhe pareciam melhores. Havia neles um amor franco e mais fraterno pelas coisas. Não ligavam para os nomes, gostavam de pequenas puerilidades — e essas, a seu ver, eram muito mais importantes que as banalidades da escola.
Os professores eram piores que os colegas. Estes, talvez por sorte ou juventude, não tinham ainda a maturidade para julgar. Aqueles, porém, não tinham desculpa. Eram formados, pais e mães de família, e agiam como donos de uma verdade que não lhes pertencia. Despejavam broncas por qualquer motivo, gritavam, berravam, desesperados como quem não tem controle nem sobre si, quanto mais sobre os outros.
Cedo constatara que a escola era uma régua, quem sabe uma balança, com a função de conduzir os seus acólitos nas veredas das vontades. Vontade de quem? Ninguém quer se submeter aos intentos alheios.
Pior era quando vinham as provas. Naquelas de marcar um “x”, sentia-se cativo por não lhe oportunizarem a expressão do pensamento. Nas poucas, discursivas, quando corrigidas, um risco imenso com a caneta vermelha à tinta quase ao fim, pressionada como quem demonstra raiva por não se submeter a uma resposta certa, meditada, porém desafinada ao orgulho de uma certeza porcamente profissional.
Na mochila afrouxada disposta às costas, entre livros, canetas e blocos de anotações, carregava as palavras soltas com o peso de uma pluma que não se faz sentir. Depois das aulas, preferia caminhar pelos bosques e áreas livres, entre as árvores da cidade, à busca de um escape que lhe infirmasse o vigor dos pensamentos. Quando muito, uma ideia fresca, daquelas inesperadas, invadia os seus pensamentos, afrontando a experiência do dia recém-assimilada e adquirida. O valor dessas ideias não lhe eram imediatos. Nesses casos, parava. Sentado, anotava-as sutilmente, esquivando-se de qualquer valor que poderia lhes atribuir. Afinal, valorar é embutir valor. Isso, de fato, ele não queria. Quem valora, julga. Sabiano não julgava, posto que não nutria certezas.
De cedo, o pai lhe apresentara a música como fermento à nobreza dos sentimentos, coisa que jamais outro alguém lhe demonstrara. Nem se diga na escola. Era um sujeito de gostos impopulares, se comparado aos amigos ou mesmo aos professores. O fone de ouvido era-lhe como um portal que se abria entre as nuvens mais claras e espessas do dia mais claro do ano.
Gostava de Johann Sebastian Bach, Antonio Vivaldi, Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig van Beethoven, Franz Schubert, Pyotr Ilyich Tchaikovsky, Claude Debussy, entre outros da mesma nomenclatura estética. Mas nenhum deles se comparava ao efeito mágico sentido quando ouvia “Bolero”, de Maurice Ravel, em suas notas harmonicamente progressivas, tal qual fiel retrato da vida, com começo, desenvolvimento e primoroso desfecho. Obra prima! Mas isso não era tudo. Nem só de nobres sentimentos vive o homem. Permeava entre o blues, o jazz, o rock. Quanto ao último, dava especial preferência à música punk. Nutria curiosidade ao estilo, conhecia a história dos acordes simples, secos, rápidos, cravados, que se contrapunham a toda ideologia estética até então produzida. Lera sobre Malcom Mclaren, produtor dos Sex Pistols, sem esquecer das lições fundamentais dos Ramones, The Clash, Buzzcocks, The Damned, Black Flag, Bad Brains, Circle Jerks, Rancid, NOFX, Bad Religion, Dead Kennedys...
Conjecturava isso tudo quando ouvia MPB. Nos arranjos e desarranjos harmônicos, como ninguém, sabia pincelar e distinguir grande parte das influências estrangeiras dentro da música genuína brasileira. Afinal, o Brasil é isso, uma verdadeira feijoada musical. O jazz em João Gilberto, o Rock nos tropicalistas, o Blues no sertanejo, o Hip Hop no RAP. Mas o samba. Ah, o samba. Dispensa comentários. É suco puro do pau-brasil.
Um mundo de pensamentos, sem alguém com quem compartilhar, com exceção do pai. Nas poucas oportunidades em que lhe era franqueada a palavra, preferia silenciar.
Mas se me confere abertura a uma confissão, caro leitor, havia sim, um amigo em especial, digno dos ouvidos mais abertos ao baixíssimo palavrear de Sabiano. Embora, confesso, fale de um mudo interlocutor, em nada perde em consideração por parte de Cleiton. Mas isso não vem ao caso, já que se trata de um segredo, e segredos não se contam, posto que, contados, deixam de sê-lo.
Certo dia, vestiu-se adequadamente e pôs-se a caminhar em direção à escola. Em frente ao prédio, parou. Sem ser visto, observou os colegas felizes conversando sobre coisas que já imaginava. Os pais, apressados taciturnos para o dia de trabalho, reclamando isso ou aquilo com os professores, inflamavam uma razão sobreposta ao próprio direito, no discurso precário de que só reclama de verdade aqueles que podem pagar.
Cruzou o portão da escola com o corpo em alma ausente. Tudo ao redor lhe soava ensaiado, previsível, gasto. Conversas sobre nada, risos sem motivo, reclamações repetidas de adultos que já não sabiam por que reclamavam. A existência ali lhe parecia um teatro de bonecos mal programados, cada qual cumprindo o roteiro que nunca questionou.
Sentou-se na carteira de sempre e fitou o quadro negro. As palavras que surgiam no giz eram as mesmas de ontem, e de anteontem, e de todos os dias anteriores. Sentiu um tédio profundo crescer-lhe no peito, não daquele que nasce do ócio, mas do que brota da constatação: nada do que estava à sua volta tinha substância. Nenhuma conversa, nenhuma prova, nenhuma nota. Tudo era espuma, e ele, ansiava por oceano.
Talvez, pensou, viver fosse exatamente isso: um desfile infindável de trivialidades disfarçadas de importância. E talvez o segredo não fosse vencê-las, mas simplesmente esquivar-se delas, como quem se recusa a dançar uma música desafinada.
Naquele instante, decidiu. Não buscaria aplausos nem aprovação.
Não precisava vencer corrida alguma, nem disputar prêmios invisíveis. Bastava-lhe caminhar, para longe dali, para fora das paredes estreitas das convenções, rumo a um lugar onde o pensamento não fosse punição e o silêncio não soasse como fracasso. Talvez esse lugar nem existisse.
Talvez fosse apenas uma ideia. Mas, para Cleiton Sabiano, a ideia de fugir já era, por si só, uma forma de liberdade.
Desse dia em diante, não houve mais notícias a respeito de Sabiano. Os amigos, nada sabiam. Não lhe eram afeitos. A polícia investigou. Câmera por câmera, vasculharam estabelecimentos, muros e postes da cidade. Por sorte (ou azar) nada escapa aos olhos das instituições.
No relatório oficial, imagens em sequência mostravam um rapaz com as feições de Sabiano que, a cada olhar mecânico das câmeras, limitava-se a uma única conduta: com a mão sinistra, erguia o dedo mediano acima dos demais, fechados, por alguns segundos. O mesmo gesto, repetido obstinadamente em cada dispositivo, do centro à saída da cidade.
Nunca mais foi visto.
Paradeiro? Sabiano: somente ele sabe.
E isso eu só sei porque sou aquele mudo amigo.
De mim, não souberam nada.
A essa altura. Foda-se. Contei.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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