Por Thiago Torres Canossa
Cinco horas da manhã. O corpo ainda cansado brigava com a mente, insistindo no comando pra que os olhos permanecessem fechados. Impossível. Embora plenamente lícito o repouso merecido, uma voz intermitente, talvez o som do inconsciente, que dizia: não há motivo pra que fique dormindo. Ao longo dos anos, o ciclo circadiano habituara corpo e mente aos costumes da rotina. Acordar cedo e trabalhar. Eis o mote de um sobrevivente moderno, há muito longe dos dinossauros contra os quais lutava o homem pela manutenção da vida, das guerras que o assolava, desgraçando o mundo e as famílias pela glória dos interesses políticos de uma constante e mesquinha oligarquia. Novos tempos. Vivia-se a grande conquista, causa mortis de muitos, devaneio distante, sonho dos nossos antepassados, desconhecido aos mais jovens, a tão querida, muitas vezes ignorada: estabilidade.
É domingo. Dia frouxo, repouso semanal garantido por lei aos trabalhadores dos dias úteis, verdadeiros comerciantes do tempo, que a própria vida negociam em troca de um mísero salário, muitas vezes precário e sem contrato, pra sorrir de quando em vez à mesa de um bar chuleiro, investindo a renda afixa dos árduos auferidos, xingando os jogadores espelhados pela imagem da um televisor barato, essa distinta classe de trabalhadores, verdadeiros gladiadores da modernidade, que não medem esforços contra os rivais no campo de batalha, à precípua e gloriosa finalidade de enfiar a redonda pelota no alçapão quadrado, balançando a rede de suas próprias vidas, nesse infinito ciclo de euforia, pão e circo.
Aos solavancos, levanto-me. Busco pelos óculos, com o qual, às cansadas vistas, analiso o continente da geladeira, presente de casamento da querida avó Maria. Nada nela de especial. Não queria despender o precioso tempo de repouso indo ao supermercado, sem dúvidas lotado. Sem falar no trânsito. Liemi saíra da cidade para aulas de pós-graduação. Não. A vida é curta demais. Lá fora o sol brilhava. Tinha méritos. Embora sem talento, afirmo sem cruzar os dedos: era esforçado. As poucas conquistas me vieram em boas causas. Estudava, e durante julgo do ofício, a meu modo, atendia bem, trabalhava e me esforçava. Papai e mamãe sempre me diziam que tornar-se uma boa pessoa não aliviava os espinhos do caminho, mas trazia recompensas em tempo devido, por meio de fenômenos distintos, bastando para isso atenção e disciplina.
Final de mês. Sobravam-me alguns trocados. Com as contas em dia, era só não abusar. Fechei a porta do refrigerador, como quem vencia todas as barreiras mentais que limitavam as vontades. Olhando ao alto, suspirei. Tomaria um, dois, quem sabe três cafés bem quentes e pretos na padaria do João Inácio. Comeria um pão fresco, recheado ao caldo de um ovo suculento entre algumas páginas. Quem sabe até escreveria algo sobre a fugaz eternidade de uma repentina alegria dominical, após um primoroso banho quente que me inflamasse as ideias, às notas eloquentes do austríaco Mozart, manejando como ninguém um harmonioso “Divertimento em ré maior”.
Nesse estado de espírito, troquei-me adequadamente, tomei às mãos as chaves do carro financiado e dirigi-me ao estacionamento. Qual então, pra minha surpresa, o automóvel, límpido e bem cuidado, ora envolto a riscos então desconhecidos e amassado. Naquele instante, a primeira decepção do dia. Olhei ao carro estacionado ao lado, em cuja frente, à direita, os vestígios frescos de uma provável recente colisão. Não sou perito. No entanto, após breves cálculos à medida das distâncias entre os carros, a firme constatação de uma mediana diligência. Busquei à memória o evento recentemente ocorrido sob as mesmas circunstâncias, quando o vizinho da vaga ao lado, sabe-se lá o deslinde e a respectiva causa, abalroara meu veículo e lhe causara avarias. Fatos passados e quitados, embora inesquecidos. Bem sei. Porém, novamente? Não é possível. Maldição dos infernos. Só pode ser cego, avariado das ideias ou incapaz de estabelecer as mínimas conexões sinápticas dos neurônios responsáveis pelas mais simples funções motoras. Deixei pra depois. Rumei à padaria.
A rua era ampla e as vagas disponíveis. Era cedo. Estacionei e desci. Tentando evitar, olhei àqueles riscos, o carro amassado. AMASSADO! Logo comigo, um mecenas da prudência. Um breve sentimento brigava com os sublimes intentos que bravamente planejara àquele dia. Reminiscências de um espectro animal. Lembrei-me de Darwin e a sua teoria da seleção natural: “Prevalecem os que melhor se adaptam”. Cogitei in albis. Deixaria pra depois. Adentrei à padaria, onde sobre o balcão principal João Inácio sorria. Aquele filho de imigrantes portugueses de longa data, homem sublime, querido por toda freguesia, dono dos melhores sonhos e simpatias. Cumprimentando-o, sentei-me ajustadamente a uma pequena mesa, ao redor da qual outras se instalavam, prontas e limpas para a distinta clientela de mais um domingo.
- Pra começar, um café duplo bem quente, João!
- É pra já! Sofia, um expresso eloquente ao escritor, por favor!
Em poucos minutos, a padaria recheava-se de pessoas desconhecidas que se alternavam entre olhares cansados e despertos. Aos meus olhos, uma imagem barroca dos contrastes noturnos entre matutinos hábitos ansiosos pelo desjejum. À minha esquerda, um casal de idosos se punha à mesa, aos movimentos sofregantes conduzidos pela musculatura há muito sem cultivo, ambos auxiliados por uma garçonete que lhes puxava as cadeiras, ao semblante rígido de quem não ganhava para isso.
Ao fundo, um velho rádio prenunciava os modestos ares de uma possível inspiração, à primorosa composição de um jazz modal contemplativo. Às primeiras notas, na forma trinta e dois compassos, não tive dúvidas, era Miles Davis com So What, habilmente manejada em seu trompete, porta de entrada ao mundo do jazz, interpretada juntamente por John Coltrane e outros expoentes do estilo. Em instantes, a harmonia seria sobreposta pelos ruídos das alheias conversas, nas mesas por todos os ângulos à minha volta preenchidas. Gente de toda espécie e estirpe. À minha direita, dois rapazes chegavam acompanhados de uma jovem mulher, aos claríssimos sintomas de uma ebriez contemporânea; tentavam disfarçar o animus visivelmente alterado, ao mesmo tempo em que acreditavam sussurrar o que a todos era possível escutar.
- Que porcaria de música é essa?
Um trago no café recém chegado que preenchia a caneca de cor branca, ao dourado das letras que se lhe inscreviam “Sibilinus”. Na memória, as aulas de gramática latina: Do latim clássico, sibilinus, aquilo que vinha das sibilas, ou seja, profecias, mensagens misteriosas ou com duplo sentido, muitas vezes difíceis de interpretar. Impossível não notar à frente. Um grupo composto por homens trajados à moda pastoril discutia aos gestos de uma aprimorada retórica um provável trecho bíblico, alguma espécie de polêmica exegética ainda não pacificada nas doutrinas da teologia que lhes correspondiam. Erguendo o dedo indicador, aos trejeitos acadêmicos de um reitor, tomou um deles à sinistra o livro de capa preta em couro, buscou pelas páginas uma passagem em que os negros olhos se firmaram em rígida concentração. Levantando-se, limpou a garganta.
- “Ouçam bem, irmãos, porque não falo em nome de especulações humanas, mas pela clareza da Palavra que o Espírito revela aos que têm ouvidos para ouvir. “Hebreus 6” não é uma metáfora, nem um alerta vazio, nem uma parábola para amaciar corações mornos! É um decreto – sim, um decreto! – contra a frouxidão doutrinária que tem infectado as igrejas com essa ideia adocicada da salvação incondicional. Quantos hoje se ajoelham nas catedrais do conformismo, pregando que, uma vez salvo, o homem pode andar no lodo e ainda assim ser recebido em glória? Isso é zombar da cruz! É crucificar de novo o Filho de Deus, como o texto diz. Não há arrependimento onde há escárnio! E não me venham com essa filosofia reformada de que os que caem ‘nunca foram salvos’. Ora, o texto é claro: foram iluminados, provaram o dom celestial, participaram do Espírito! Não são sombras, são realidades! Quem ousa reescrever o que está escrito, só para caber na teologia de Genebra? A verdade é esta: pode-se cair sim, e cair de modo a não se levantar mais. O Evangelho exige permanência, não presunção. O céu não é herança de quem começa bem, mas de quem termina de pé. Quem lê, entenda.”
Eu, que não sou religioso, atentei-me à explanação. Uma bela exposição a quem interessasse. Não era o meu caso.
Outro café e um pão com ovo. Na tentativa de silenciar a mente obstruída por aqueles ruídos em notória ascensão, saquei do bolso um exemplar de “O Ressoar das Coisas Mortas”, coletânea minimalista de Caetano Lira Mendonça, poeta do furgere urbem mineiro, que, em seus textos, proclamava o resgate de uma vida simples, longe dos vícios da sociedade, pela contemplação silenciosa dos dias fugazes que se escoam nas necessidades da competição. À vista dos prolegômenos, desconcentrei-me ao olhar à porta do estabelecimento, por onde vi meu carro, iluminado pelo sol que lhe distorcia as formas – AMASSADO. Interrompi a leitura, divagando sobre a falta de cuidado e o desrespeito. Ao menos, viesse-me o causador se retratar do prejuízo que me causara. Uma explicação bem retratada em um educado pedido de desculpas acompanhado da promessa de reparação... é o mínimo. Maldição.
Em pé ao balcão, àquela hora, já se bebia, inflamados por uma discussão.
- “Não fosse esse que aí está, o país não estaria em frangalhos. Inflação em alta, comida cara e um salário que não paga o relicário em que se inscreva os males da República, essa falsa instituição em que se esconde o fantasma da velha monarquia, habilmente conduzida por uma vivíssima, saudável e ousada aristocracia que, sem medo, conduz o cetro de mão em mão aos seus raríssimos escolhidos, a cada quadriênio, às ocultas fraudes travestidas pelo famigerado instituto da eleição”.
- “Não fossem os militares e as espadas de Deodoro e Floriano, não passaria, nem você, seus ascendentes e sua família, de um pobre súdito de Pedro, qual lhe arrebataria incansavelmente os míseros rendimentos aos quintos, para a glória de Portugal. Um verdadeiro escravo moderno. Eis o que seria. Por pior que seja, a República inda é o que há de melhor em forma de governo. Agradeça aos franceses. Sem Robespierre, estaríamos a beijar os pés da realeza.
- “A isso, uma coisa só lhes digo. O exército republicano sucumbiu perante as tropas de Antônio Conselheiro. Canudos, isso sim, é exemplo duradouro do legado, das virtudes de um monarca”.
Embora atento, era-me tudo aquilo indiferente. Nos gestos entre olhares em constante movimento das pessoas que jogavam fora as suas conversas, o retrato duma sociabilidade necessária e barulhenta, sufragando a beleza do silêncio contemplativo há pouco adornado pelo toque de um jazz a todos os presentes desconhecidos.
A tempo, entra o prefeito, por todos vigorosamente reconhecidos. Bem trajado, aos justíssimos dentes que se iluminavam aos sorrisos, de mão a mão cumprimentava os clientes que suspiravam, reconhecendo nele a figura da autoridade máxima do poder Executivo. Não é pra menos, em meses chegariam as eleições. Um breve silêncio, cortado ao meio por uma salva de palmas estridentemente irritante aos mais sensíveis ouvidos. Às mesas, o semblante à face das pessoas que esperavam ansiosamente pela oportunidade de uma palavra, uma reclamação, ou, quem sabe, um pedido.
Tinha certeza de que naquele dia, ao menos ali, nada poderia ser lido, tampouco escrito. A euforia voltara à mil. Olhei o carro avariado. Levantei-me no intento certo de ir embora, quando, em inesperado átimo, um mendigo abrira a porta. Aos trapos, descalço da própria dignidade, pôs-se caminhar em torno do local, indo, parando, voltando, olhando profundamente nos olhos de cada qual, pra surpresa e espanto de todos, que, a par do fato, presenciavam a cena do ilustre prefeito relaxando o sorriso, de fininho, deixando a padaria, sem legar os rastros do seu fim ou aonde teria ido. Silêncio abrupto. Fim das conversas, desfecho de todas as postas controvérsias. Sem ao menos pagar o consumido, como água morna em cano liso, foram-se todos, os religiosos, monarquistas, republicanos, os ébrios e os saudosistas. Fiquei sozinho.
- Café, João! O melhor, pra mim e ao herói desnutrido, mensageiro da paz, a quem almejo o vigor de conhecer e quem sabe dele ser amigo.
Agradecido, sentou-se à minha mesa o mendigo. Seu nome era Sócrates.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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