Por Antonio Luceni
O tema da vez, nos mais diferentes círculos políticos, educacionais, culturais etc. diz respeito à “adultização infantil” nas redes sociais da internet, provocado pelo influencer Felca. Não sem tempo.
Como “adultização infantil”, no contexto acima, entende-se, sobretudo, a herotização e sexualização, a rigor, acompanhada da monetização pelo uso e exploração da infância por “lobos” de plantão.
A discussão é antiga, tanto quanto a história da humanidade. Os contos de fadas, por exemplo, foram usados como uma espécie de “alerta” para crianças e adolescentes se precaverem contra as investidas de adultos. Não tinham nada de finais felizes, não.
Basta pegar as versões mais antigas, como as descritas pelo italiano Giambattista Basile (1566 – 1632) e pelo francês Charles Perrault (1628 – 1703), para constatarmos isso: Em Chapeuzinho Vermelho, o mais conhecido deles, a garota é estuprada e digerida pelo lobo (não há caçador nem cesariana que a salve do triste fim); as meias-irmãs de Cinderela cortam dedos, calcanhares e tornozelos a fim de que seus pés se encaixem no sapatinho e, com isso, possam se casar com o príncipe; João e Maria são assados e comidos pela bruxa; no conto A bela adormecida, também conhecido como Sol, Lua e Talia, a menina, enquanto dorme, é estuprada por um rei e dá a luz a dois filhos; Branca de Neve, na versão original, tem seus pulmões e fígado devorados como sobremesa pela rainha, que era a mãe dela, a fim de provar a sua morte.
Entre os muitos outros contos, romantizados e adulterados pela Disney para fins comerciais. Quem tiver interesse em conhecer detalhes sobre estas e outras histórias, sugiro a leitura do livro A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim (1903 – 1990), editora Paz & Terra.
E, assim, os ataques e violências contra crianças e adolescentes (como abandono parental, exploração do trabalho infantil, exploração sexual, ausência de moradia, alimentação, lazer, vestimentas, arte e tantos outros itens necessários para uma vida digna e adequada) atravessam tempos, geografias e culturas, com muita coisa sendo jogada para debaixo do tapete, ao ponto de se ter que criar, há 35 anos, no caso brasileiro, um Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, de modo a assegurar e reforçar direitos mínimos a estes cidadãos.
Nas últimas décadas, e cada dia mais, um novo componente vem contribuindo para que as possibilidades de desrespeito e de acesso às vidas de crianças e adolescentes se deem de modo mais rápido e “certeiro”, muitas vezes travestido de “lazer”, “brincadeira” e “distração”, a saber: a internet, com os seus múltiplos canais e agentes.
Pesquisas recentes, por diferentes órgãos públicos e particulares, indicam os prejuízos que crianças, adolescentes e adultos estão tendo com o uso excessivo e inadequado das mídias digitais, a ponto de alguns países do chamado primeiro mundo já se anteciparem e limitarem o contato com o “mundo virtual”, indicando e estimulando o retorno e acesso a materiais analógicos e a “ambientes reais”.
Entre eles, o livro físico vem retomando forças num espaço em que, antes, foi protagonista.
Do ponto de vista da literatura infantil e juvenil, como resposta à valorização e respeito à infância, sugiro alguns livros:
O menino maluquinho, de Ziraldo (1932 – 2024), editora Melhoramentos, já é um clássico da literatura infantil brasileira. Um garoto travesso, cheio de criatividade e energia, sendo protagonista de sua vida e ações, quase sem medos, disposto a investigar e questionar o mundo ao seu redor. "Ele era muito sabido/ ele sabia de tudo/ a única coisa que ele não sabia/ era como ficar quieto”. Foi adaptado para a televisão, cinema e teatro, fazendo sucesso entre pequeninos e grandões.
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda (1944 - ), editora Autêntica, é uma paródia do tradicional conto Chapeuzinho Vermelho. A protagonista da história de Chico é uma menina que tem medo de tudo. Desde coisas mais simples, como cair, se machucar, de trovão, até de dizer algumas palavras, pois tinha medo de engasgar. Estagnada, o medo acabava tornando a sua rotina extremamente difícil. Até que um dia acontece uma reviravolta em sua vida e... Bom, seu eu fosse você, iria correndo pegar o livro pra saber o final surpreendente dessa história.
Poesia, pipoca e pião, de Antonio Luceni – euzinho, (1977 - ), editora Somos, propõe a literatura/poesia como um dos ingredientes indispensáveis na formação de crianças e adolescentes, tanto quanto comer e brincar. O livro é composto de 25 poemas, que estimulam a leitura e o brincar com as palavras e que podem, muito bem, extrapolar as letras e desencadearem a retomada de brinquedos e brincadeiras tracionais, a feitura de pratos saudáveis e nem tanto assim; afinal, quem nunca derrapou na alimentação com chocolate, sorvete e outras gostosuras?
A literatura e a poesia, os livros físicos, as brincadeiras de rua, museus e galerias, bibliotecas e tudo o mais que tratem a infância da maneira como ela deve ser tratada, ou seja, com respeito e um olhar cuidadoso em relação a temas (incluindo os sensíveis), materiais, questões, linguagens etc. são, sem dúvida nenhuma, um caminho urgente e necessário na formação de cidadãos críticos e conscientes de seus direitos e deveres, além de propiciarem as subjetividades necessárias para uma vida independente das telas de computadores e celulares.
Antonio Luceni é doutorando em Artes pela UNESP, câmpus São Paulo, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras.
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