Por Jonathas Magalhães
ONTEM (21/05) ACONTECEU ALGO que pode mudar sua vida para sempre. E você provavelmente nem ficou sabendo.
Enquanto você estava no trânsito ou esperando na fila do PS, os senadores brasileiros deram o primeiro passo para matar a única eleição onde sua opinião ainda faz diferença real. A Comissão de Constituição e Justiça aprovou a PEC 12/2022.
A partir de 2034, você só vai votar uma vez a cada cinco anos. Para tudo.
Presidente, governador, prefeito, vereador. Um combo político completo. Parece prático? É. Vai economizar R$ 1 bilhão por eleição? Vai. Vai acabar com aquela "politicagem" de dois em dois anos? Também.
Mas tem um probleminha que ninguém está falando : pode acabar também com a última conexão real entre você e quem decide sobre o buraco na sua rua.
A Diferença que Você Nunca Parou Para Pensar
Responda rápido: quando você vota para prefeito, qual é o critério? E quando vota para presidente?
Se você for honesto, vai perceber algo interessante :
- Para prefeito: você vota em quem promete asfaltar sua rua, colocar médico no postinho, arrumar a creche do bairro. É voto pragmático.
- Para presidente: você vota em quem representa seus valores, sua visão de Brasil, seu projeto de país. É voto ideológico.
E isso não é problema. É genius .
Porque problemas locais pedem soluções locais. E problemas nacionais pedem visões nacionais. Misturar os dois é como usar chave de fenda para cortar carne: tecnicamente possível, mas o resultado não vai ser bom.
O Que Acontece Quando Você Mistura Tudo numa Cédula Só?
Daniel Kahneman ganhou um Nobel provando algo que todo marqueteiro já sabe: quando você tem muitas escolhas ao mesmo tempo, seu cérebro usa atalhos.
Qual vai ser o atalho numa cédula com seis cargos?
Simples: a marca mais forte .
Você vai "colar" o prefeito no presidente que escolheu. Vai votar no vereador que "combina" com o governador. É automático, é humano, é previsível.
O resultado? O cara que realmente conhece os problemas da sua cidade pode perder para aquele que "representa melhor" a ideologia que você escolheu lá em cima.
É como ir ao supermercado comprar pão e sair com um carrinho cheio porque estava com fome. Só que aqui você está "comprando" quem vai governar sua cidade pelos próximos cinco anos.
Por Que Isso Me Deixa Preocupado (Eu, que Trabalho com Isso Há 25 anos)
Trabalho com comunicação pública desde que você tinha Orkut. Vi prefeituras que transformaram cidades e outras que desperdiçaram fortunas. E uma coisa sempre foi constante:
Na eleição municipal, o que decide é resultado concreto .
O eleitor perdoa o prefeito que não sabe fazer discurso bonito, mas arrumou o posto de saúde. Cobra do que fala bem, mas deixou a creche sem professor. É voto baseado em experiência diária, não em narrativa.
Já na eleição nacional, o jogo é outro . Ali você escolhe entre projetos de Brasil, entre o que acredita que o país deve ser. É legítimo, mas é ideológico.
A PEC mistura os dois. E quando você mistura pragmatismo local com ideologia nacional, quem ganha ?
A ideologia. Sempre.
A Uberização da Política (E Por Que Isso É Perigoso)
Zygmunt Bauman cunhou uma expressão genial: "modernidade líquida" — quando tudo que era sólido vira fluxo, tudo que era próximo vira distante, tudo que era humano vira algoritmo.
A PEC faz exatamente isso com a democracia.
Transforma a solidez do vínculo local (você encontra seu prefeito no supermercado) em fluidez nacional (você vota baseado no que viu no Instagram). É a uberização da política: mais eficiente, menos humana.
Pierre Bourdieu sempre dizia: poder funciona através de proximidades e distâncias. Quanto mais próximo, mais controle você tem. Quanto mais distante, mais você vira estatística.
A PEC está prestes a transformar até seu voto local em estatística nacional .
O Restaurante de Bairro que Virou Rede (Uma Analogia que Vai te Fazer Entender)
Imagine que você frequenta um pequeno restaurante há anos. O dono conhece seu prato preferido, sabe que você não gosta de pimenta, lembra do aniversário dos seus filhos.
Um dia, uma rede grande compra o restaurante e decide "otimizar": em vez de cardápio diário, agora só tem um mega-buffet por semana. "É mais eficiente", explicam. "Atende mais gente de uma vez."
Tecnicamente, faz sentido. Economicamente, é mais racional .
Mas você perdeu algo que não tem preço: a relação direta, o atendimento personalizado, a sensação de que sua opinião importa para quem está do outro lado do balcão.
É exatamente isso que a PEC faz com a democracia .
A Pergunta que Ninguém Quer Fazer
E se o problema não fosse ter eleições demais, mas democracia de menos?
E se em vez de reduzir os momentos de escolha, a gente ampliasse os espaços de participação?
E se a verdadeira reforma fosse fortalecer a conexão entre eleitor e eleito, em vez de torná-la mais rarefeita?
Porque algumas coisas, uma vez perdidas, não voltam mais .
A política do "olho no olho" pode ser uma delas. A sensação de que seu voto importa na resolução dos seus problemas reais pode ser outra.
O Que Está em Jogo (E Por Que Deveria te Importar)
A PEC vai para o plenário do Senado com pedido de urgência . Depois seguirá para a Câmara, onde precisará de 308 votos em dois turnos.
O Brasil tem até 2034 para decidir se quer uma democracia eficiente ou uma democracia viva.
Mas essa escolha pode ser irreversível .
E a pergunta que fica é simples: vale a pena descobrir se conseguimos viver numa democracia onde você só importa uma vez a cada cinco anos?
Porque se a resposta for não, pode ser tarde demais para voltar atrás .
Jonathas Magalhães é publicitário, especialista em comunicação pública há 25 anos e fundador da Pública On. Acredita que política sem proximidade não é política — é administração à distância.
** Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.