Opinião

A Origem da Verdade - Parte II

"Quando jovem, só queria os resultados. Nada mais. E quando os conquistava, me entristecia, querendo mais. Só o tempo pôde me mostrar que, com o tempo, os resultados não mais importavam"
Da Redação
18/08/2025 às 19h43

Por Thiago Torres Canossa

 

A chama das velas fumegava mais do que o comum. Meus olhos ardiam, enquanto a mente latejava sob o peso daquelas palavras enclausuradas pelo hermetismo de uma escrita provavelmente antiga, a mim, não obstante os esforços hercúleos, integralmente desconhecida. Fechei o manuscrito por um instante. Assustado com a desacreditada capacidade ante o curioso objeto à minha frente, propus-me uma pausa. A noite seria longa. Todos dormiam. Era cedo. Comparado com os demais, meu barraco situava-se mais ao pé das montanhas. Com exceção do vento frio que balançava as lonas das cabanas e os pastos, uivando tal qual lobo solitário, o silêncio inda reinava, favorecendo meus propósitos de investigador, ansioso menos pelo fim, se comparado à maturidade proposta pelos meios. Quando jovem, só queria os resultados. Nada mais. E quando os conquistava, me entristecia, querendo mais. Só o tempo pôde me mostrar que, com o tempo, os resultados não mais importavam. A vivência está no meio, assim como a vida é permanente no agora. Importam mesmo são os meios, o caminho e a árdua caminhada, com todas as suas pedras e pedradas.

 

Vesti o casaco pesado, pus água para o café e, em seguida, abri a porta da cabana. O frio das montanhas de Aravento entrou como uma lâmina, mas ao mesmo tempo me devolveu a lucidez. Acendi um cigarro e me pus a contemplar o céu. Estava claro, povoado de estrelas antigas, como se elas também fossem testemunhas do que eu acabara de ler. E pensei comigo mesmo: o conhecimento tem esse dom perverso e sublime: quando se conhece, tudo muda de forma. O que era apenas pedra, vira ruína; o que era silêncio vira memória; o que era paisagem vira história.

 

O passado daquele lugar, até então ermo, agora se erguia diante de mim como uma cidade oculta. Vi nas sombras dos vales os homens que um dia caminharam, ouvi as vozes das antigas festas, senti o peso das disputas e o sopro dos deuses em que se acreditava. O manuscrito clareara-me as lentes, por meio das quais aquele velho novo mundo já não me parecia o mesmo.

 

O que é, afinal, viver, senão carregar os olhos de novos significados? O saber não apenas amplia a mente, mas colore o destino. Dá sabor ao ar, dá corpo ao tempo, dá forma ao que, antes, era apenas vazio.

 

Traguei mais uma vez, e deixei que a fumaça se confundisse com o frio da noite. No fundo, já ansiava por voltar ao manuscrito. Algo me dizia que as próximas páginas não eram apenas registro de um povo extinto, mas um prenúncio, talvez, daquilo que nos tornamos.

 

Recolhi-me, apaguei o cigarro no umbral de pedra e tornei à mesa. A vela ainda ardia, como fogo eterno que homem qualquer jamais apaga. O livro, imóvel, aguardava-me, sabendo que eu retornaria. Abri-o novamente. O Escriba retomou sua voz:

 

(Fragmentos traduzidos do Manuscrito de Aravento) – Continuação...

 

“No princípio, era o Vento. Ao longo das frias noites do passado, pelas quais transitava o tempo sem obstáculos, os eventos destas terras eram testemunhados pelos animais, pelas plantas e insetos dos pastos adaptados à paz e ao silêncio deste lugar, um dia violados pelos meus antepassados, que, vindo de muito longe, buscavam, como um maltrapilho busca o céu, a fertilidade a si e aos seus.

 

Perdidos, aqui encontraram o refúgio da fartura. Construíram lares com pedra e barro, forjaram instrumentos de caça e lavoura, ergueram pequenos altares às forças que não compreendiam, mas reverenciavam. Viviam sob o compasso das estações: a semeadura na primavera, o trabalho duro no verão, a colheita no outono e o recolhimento no inverno.

 

O tempo, porém, nem sempre um bom aliado, molda mais do que a terra: molda a vontade dos homens. Com as gerações, paulatinamente, a paz virou moeda, trocada em disputas por terras, águas e rotas de caça, a partir do que uma nova era se instalou: o prenúncio do caos. O espectro de uma guerra civil se formava, clamando alta por adeptos ambiciosos por poder e decisão, forjando múltiplas vontades alimentadas pela força da insatisfação.

 

Conforme os anos se passavam, os motivos para comemoração deixavam de existir. As festas de tradição, que eram eventos regulares para reunião em graça às dádivas concedidas, foram esquecidas, vívidas apenas nas memórias dos que hoje já partiram e nos relatos deste singelo escriba, a quem foram transmitidas, guardadas a sete chaves para minha missão de zelo e composição.

 

Grupos se formavam e seccionavam o povo que um dia fora uno em ideal.

 

O desejo, diria certo poeta, é o princípio de todos os males.

 

E no auge dessas contendas, um homem, vindo das guerras distantes, com seus armeiros montados em cavalos gigantes, impôs-se pela força. Comandava com a voz grave e as mãos pesadas, mas tinha o carisma de quem conhece os medos e desejos dos povos conquistados. Detentor de armas, instrumentos e linguagem sofisticada, foi escolhido líder, não por eleição de palavras, mas pelo consenso silencioso de que ninguém ousaria desafiá-lo.

 

Kairon, como era chamado pelos seus, fez-se líder sem esforço. Dominou os povos das montanhas de Aravento, instituindo-lhes a língua oficial de seu povo, o culto dominante a um deus único, por meio de uma disciplinada e aceita catequese, impondonos os hábitos que relegavam nossa cultura ao espaço de um passado rudimentar. Em pouco tempo, esqueceríamos nossas origens.

 

Estabeleceu leis onde não havia: o tributo do quinhão da colheita, o trabalho forçado para os devedores, a escravidão e a obediência absoluta à sua autoridade. Assim, garantiu paz aparente, mas também plantou o germe da insatisfação. Entre murmúrios nas tavernas e olhares furtivos nas vielas, crescia o desejo de um outro destino.

 

E foi nesse cenário, quando a ordem começava a se desgastar, que ele, o novo líder de Aravento, veio a mim. Subiu as trilhas até minha casa, aqui no alto, onde vivo cercado pelo silêncio. Trouxe não soldados, mas a inquietação nos olhos e um pedido que mudaria o nosso destino.

 

Daqui do alto, vê-se distantes as planícies ao longo do horizonte, cortadas pelas montanhas entre pacíficas nuvens que inspiram até os mais indiferentes. Iam-se os dias desde a chegada dos povos conquistadores, quais não os havia vislumbrado até então, a não ser pelas notícias, vindas dos poucos confiáveis, aos quais franqueio visitas.

 


- São homens altos, fortes, munidos de longas barbas vermelhas que cavalgam cavalos de mesmo porte.

 

Tempos depois, seu líder veio ao meu encontro.

 

- Honrado em conhecê-lo, ó digno Escriba. De longe são os relatos sobre tão nobre alma, repleta de profundo e afamado saber. Creio ter tido notícias dos mais recentes fatos recaídos sobre sua terra. Em guerra não viemos, embora seja a guerra nosso ofício mais longínquo e corriqueiro. Questão de sobrevivência, sabe como é, e a história é nossa eterna testemunha. Diga-me, quem sois e qual a razão de tanta solitude?

 

- Nossos deuses o saúdam. Sou apenas um velho, que, cansado das tribulações a que se impõem os homens conterrâneos, decidiu um dia se afastar, pra de perto ver os deuses, sondar suas vontades e agir conforme elas nos fazem crer.

 

- Sábias palavras justificam tua fama. Não quero lhe tomar o tempo com delongas desnecessárias. Sabes já a que viemos, porquanto aqui já nos assentamos e daqui fizemos lar. Quero o melhor ao seu povo, do qual hoje me faço líder. Me chamo Kairon, e anseio à paz.

 

- Louvados sejam seus propósitos, Kairon. Vês que não sou homem de posses. Minha cabana é simples, embora forte o bastante que me mantenha intacto das forças rebeldes, dos homens e das intemperanças da natureza. Nessa morada, longe, vejo tudo perto. Penso, organizo e escrevo. Nada mais. Fora isso, em que posso ser-lhe útil?

 

- Nada lhe ordeno, embora lhe peça. As terras de Aravento abrigam um povo bom, trabalhador, porém carente de vontades nobres e organização. Suas leis são rústicas e carecem da força da obrigação. Almejo aprimorá-las, reunindo-as em pétreo código, que se transmute apenas pela força dos fatos mais imprescindíveis, em prol do bem estar comum. Não sou um déspota e não quero sê-lo. Com sua ajuda, hei de ajudá-los. Almejo sejam conhecedores da Verdade, a do Alto, a única e verdadeira Vontade.

 

Aos modos de um homem justo e experimentado, Kairon se me demonstrara uma pessoa razoável em seus propósitos. Contara-me das suas origens e caminhadas, tal qual nômade sedento, revigorado ante a fonte de água limpa e fresca. Dissera-me sobre o seu povo, forjado nos campos de batalha em busca de um lugar onde pudessem encontrar a paz. Encontrou-a, é verdade, sem maiores dificuldades, nas planícies de Aravento. A paz do nosso povo, ameaçada, sem qualquer resistência ao dominador que nela quis fazer morada.

 

Dali, mostrei-lhe o alcance de nossas terras. Contei-lhe sobre as origens, nossas crenças e tradições, até então puras e intactas. Falei-lhe sobre os deuses, nossas festas, sobre o povo, então unido, que se distanciava, e que, aos poucos, nada fosse feito, faria guerra a si, aos seus, e se aniquilava.

 

- Temo por dias que não se clareiem envoltos nesses motivos.

 

E, ao falar-lhe dos nossos deuses e costumes, percebi em seus olhos um cálculo dissimulado pela admiração. Como quem já pensa em que parte a memória há de ser apagada, e que parte será moldada à sua Vontade”.

 

O Escriba.

A continuar...

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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