Opinião

A Origem da Verdade - Parte I

"Os dias são como pérolas. Deles usufruímos o pão da vida, com todos os elementos necessários à busca pela felicidade, que não demanda posses, mas o refinamento e o constante aprimorar das atenções"
Da Redação
11/08/2025 às 20h01
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Por Thiago Torres Canossa

 

O inverno esforçava o seu último suspiro quando subi, mais uma vez, nas encostas frias dos montes de Aravento.

 

A missão não era minha... era do meu superior, e eu, arqueólogo há mais anos do que gostaria de contar, apenas cumpria as ordens e media o solo conforme as instruções que me chegavam. Não me haviam dado mais do que o necessário: coordenadas, prazos e silêncio. Não sabia se cavávamos em busca de templos, fortificações ou simples pedras esquecidas. O que sabia, com toda certeza, era que queria ir embora antes que o frio me arrancasse os ossos.

 

Ao pôr-do-sol, sem sucesso, preparei-me ao regresso. O céu queimava em tons de cobre e chumbo, e os ventos do vale começavam a se enroscar pelas veredas. Foi então que o vi: meu colega, vindo do Lote 7, caminhando com cuidado, como se carregasse um filhote de pássaro. Quando chegou, estendeu-me algo. Não era papel, não era couro, mas uma matéria frágil, daquelas que se seguram com o cuidado ante um recém-nascido. Um livro, ou algo próximo disso, decomposto em partes, porém em unidade ainda intacta em sua essência. Gravados nele, símbolos que não pertenciam a nenhum alfabeto, ao menos que eu reconhecesse.

 

— Achei ali, nas encostas baixas — disse, ofegante. — Intocado.

 

Pedi-lhe que não comentasse com ninguém sobre o achado, ao menos até a manhã seguinte. Chegando ao acampamento, limpei-me às pressas, travei a porta do quarto improvisado e acendi algumas velas.

 

Passei a noite fria debruçado sobre a pequena mesa, inclinado sobre aquele curioso objeto, tentando dele arrancar o que pudesse, em termos de significado. Os traços não eram mero ornamento; neles havia cadência, uma respiração própria. Aos poucos, reconheci padrões, alinhei-os a fragmentos que vira em inscrições dispersas nos rochedos. Tratava-se de uma língua em alfabeto distinto, certamente há muito morta, de uma provável população antiga que no passado tivesse dado vida àquelas montanhas.

 

E, à medida que o silêncio da noite se adensava, as palavras começaram a me contar uma história. Um relato íntimo, quase um diário, escrito por alguém que, à sua época, pode ter sido um sábio, daqueles remotamente incompreendidos, que vivem pelo anseio dos fatos eternamente chancelados em registro. Acaso? Não sei.

 

(Fragmentos traduzidos do Manuscrito de Aravento)

 

“Nas frias e longínquas noites destes montes, morada de meus antepassados, a vida fluía como água fresca, limpa e contínua, de uma nascente dourada, por onde fornecia os meios para o princípio de uma rústica comunidade nômade que há milênios aqui se assentara. Fugindo da estiagem, como quem carrega ao colo a esperança de dias melhores, meu povo aqui se estabeleceu. Ao longo dos anos, conquistou nas terras férteis os meios e os recursos naturais para a própria manutenção. Com os ventos das gerações, vieram os filhos, os netos e os bisnetos a darem continuidade aos anseios dos patriarcas, forjando a cultura incipiente legada pelos mais velhos que se iam, sob os auspícios da honra e do respeito incondicional às tradições .

 

No efêmero da vida, busquei recursos na tradição oral para me convencer a respeito da importância dos registros. Os dias são como pérolas. Deles usufruímos o pão da vida, com todos os elementos necessários à busca pela felicidade, que não demanda posses, mas o refinamento e o constante aprimorar das atenções.

 

Viver é precioso. Encontrar o dom, essencial. Não sei o que se passa no além, tampouco a vontade dos deuses. Certo, porém, é que existe um sentido maior e único que se encaixe em tamanha complexidade. Em dado momento, as coisas se encontram e uma luz se acende. Basta se atentar. A prática da reflexão é natural entre os povos e tão antiga quanto a própria estrada em que se perde o chão. Maior em uns, menor em outros. Por ínfima que se creia, cada qual tem sua missão nesse antro de significados ocultos, dispostos a serem revelados, quais, ao menos a mim, jamais passaram despercebidos.

 

Não sei quanto me resta. Sei que estou vivo, o suficiente que respire e que cumpra os desígnios daquilo que acredito, revelado ao longo dos anos no cume destas montanhas onde hoje inda existo, aspirando relatar o pouco do que vi e conheci, a fim que conheçam os meus póstumos, e os inspire com a história de Aravento, seus fardos, princípios e suplícios”.

 

O Escriba.

 

A continuar...

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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