Por Thiago Torres Canossa
“Suava. Não o suor quente e molhado de quem clama pelo frescor dos dias amenos. Eram suores frios, secos por fora, porém abundantemente endógenos, lacrimosos por dentro, como a tempestade de alto-mar em que se afogam os náufragos ambiciosos, arrependidos pela imprudência de uma odisseia mal aventada, a cada sorvo de água salgada, tragada entre as lágrimas indistintas, ao sabor do medo e do desconhecido.
Há pouco, cogitava o que foi feito. “Ação em curto-circuito” - diriam os juristas aos acadêmicos sequiosos pelas doutrinas criminais. Ao redor, as ocultas sombras ao silêncio de uma noite erma e fria, distante dos olhares curiosos às imagens proibidas, o som atípico dos ruídos que anunciam a dor, clamando à morte até os mais longevos e queridos.
O outro, olhava pétreo pelas brancas mãos, embebidas pelo sangue escarlate. Sufocando, testemunhava com horror os próprios passos ao cadafalso pelo golpe ultimado que em poucos instantes o levaria ao chão, asfixiado pelo próprio sangue. Um grito, uma lágrima. O silêncio.
Parou aí. As palavras o traíam. A cabeça cansada fervilhava em busca pela continuação de um enredo à trama ambicionada, sobre a qual pouco sabia. Começara bem. Pensou em um suspense baseado nas condutas humanas inconsequentes, inflamadas por um trágico desfecho, não sem antes antever as dificuldades em desenvolvê-lo, com a construção de personagens em determinada ambientação, contexto ao começo, meio e fim, à sua escolha e criação. Era complexo. Escrever é o último ato, o mais fácil ao escritor. Difícil mesmo era criar. Atentar-se às nuances da vida, recheadas de possibilidades à apreensão demanda tempo, ócio e disposição. Isso, fatalmente, era algo de que Augusto Severo não dispunha. Dentre todas as outras, essa, a peça desencontrada, ocultava-se à conclusão de seus mais remotos e solitários sonhos: Escrever.
Doutor Severo. Assim era conhecido pela clientela do Direito Criminal. Aluno mediano, de poucos talentos, formara-se em Direito no ano dois mil, desde quando, pouco a pouco, passou a angariar serviços avulsos para a defesa majoritária de alguns investigados, acusados ou mesmo um ou outro condenado por condutas previstas como crime ante a lei penal. Indisposto à técnica, fazia o mínimo, para a justiça de seus parcos honorários, que lhe rendiam uma vida pacata em uma casinha simples na periferia da cidade. Julgava não precisar de muito; afinal, o país está saturado da incompetência de bacharéis, que se formavam ano a ano, aos milhares, em faculdades de baixíssimo renome, pra fazer o óbvio, digno a qualquer inapto com um pouco de ousadia, atributo esse de que também não dispunha, nem com a lei, tampouco com as palavras.
Sentado desconfortavelmente à mesa de alumínio armada na pequena biblioteca local, rascunhava aquelas palavras entre breves pausas, durante as quais contemplava a imensidão dos livros dispostos em cada prateleira. Nesse átimo, era como o tempo que concede a trégua imprescindível à sobrevivência durante o interstício das decisões condicionadas a termos: o início e o fim. Sentia-se tal qual a vítima dos casos em cujo desfecho patrocinava a defesa do autor, uma bomba-relógio a instantes do disparo, ou tal qual o náufrago, arrependido de seus atos, à asfixiada iminência do próprio fim. O tempo não cabia em seus sonhos.
Nos livros, a vida era mais fácil. O tempo ali não existia, salvo o momento do enredo. Ao cabo duma obra, a bel momento podia-se recomeçá-la, regressando ao momento da trama criada e, tanto quanto quisesse, revivê-la. O tempo dos livros era o único que se eternizava.
Era comum dispensar todos os convites. Julgava não valer a pena dispender o tempo legado aos sonhos com coisas verdadeiramente banais. Solteiro, via os relacionamentos como a fonte de todos os males. Dar corda às relações, de amizade ou mesmo passionais, a seu ver, limitavam a concretude das coisas grandes, essas sim, dignas de poucos escolhidos, aparelhados pela gênese com a rara sensibilidade dos semideuses.
Pensava o mesmo sobre as religiões, posto que nelas ainda não encontrara qualquer sentido, salvo o de se ancorar às ideias por outrem criadas, manipuladas com vistas ao fim ideológico dos postulantes, verdadeiros intérpretes engajados, críticos literários de fenômenos até hoje à ciência desconhecidos. Acreditava que os livros sagrados não passavam de literatura criada por poetas de outras eras, em cujo esplendor, por força do desconhecido, fora elegida ao alcance das verdades indispostas aos vestígios, sufragadas pelos ventos dos milênios.
Ao final, tratava-se de uma simplória constatação: bastava ver a quantidade quase infinita das nomenclaturas religiosas dentro de um mesmo segmento, criadas por força das dissidências de interpretação aos textos sacros. A linguagem é isso, uma espécie de borracha que se flexibiliza à vontade do leitor, que concorda ou discorda, diminui ou amplifica, aceita ou a ramifica. A língua era seu mais poderoso instrumento de trabalho. Com ela, adequava os fatos, criando verdades ao convencimento do magistrado, hábito que o levara ao mundo da escrita.
Nada obstante, acreditava no poder transformador da arte, ao menos em ser eternamente livre no que se propunha a criar.
Voltou a atenção à caneta com a qual há pouco rascunhara seus escritos. Lendo-os, os rasgou. Olhou ao relógio, era tarde. Novamente frustrado pela inconclusão daquele anseio, arrumou os seus apetrechos, despediu-se do funcionário e saiu.
- Até breve, Alexandre. A depender, volto amanhã. Não sei. Se me houver, o tempo...vamos ver.
A fama de Severo era ampla na cidade. O bibliotecário o conhecia pelas notícias dos jornais que veiculavam os seus feitos em defesas criminais. No fundo, ressentia-se por Severo, um homem solitário, quando raramente acompanhado, era só das frustrações, descontadas nas insípidas tentativas de se tornar um eloquente pensador.
Foi a pé. Não morava longe. No trajeto, conjecturava os seus fracassos. Amanhã seria um novo dia, igual a todos os outros. Ao trabalho, lidar com o de sempre, adiando os sonhos para ter o de comer. Isso lá é vida? – pensou alto. Caminhando, olhava os sapatos surrados sob a luz da lua que o ofuscava, marcando os contornos de uma miséria que insistia em vê-lo afundar.
- Sem gritar. É um assalto. Me dá carteira e tudo mais o que tiver. Não esqueça do celular.
Pela primeira vez, viu-se diante da inesperada inação, frequente na dinâmica de um ou outro personagem de seus velhos engavetados escritos. Nessas horas, vê-se esvair toda força da razão. A emoção se amarga e não disfarça o medo ante as alheias e injustas intenções.
- Não faça nada, por favor. Leva o que quiser. Deixa minha vida.
- Doutor Severo?
- Sim, por favor.
- Sem barulho, entra nesse carro.
Fora conduzido à força por um homem encapuzado pelas ruas vazias da cidade, passando por uma estrada rural em que reinava o silêncio vil da noite, rumo ao desconhecido. No trajeto, o desespero das memórias ao desfecho de uma história cujo fim lhe era imprevisível.
O carro parou. O homem descera, levando consigo Augusto Severo, a quem, com um único golpe, fez cair à grama úmida de joelhos.
- Tem mais dinheiro?
- Não disponho. Sou um pobre advogado.
- Tem família que pague o seu resgate?
- Não.
- Amigos?
- Também não.
- Sabe rezar?
- Careço de crenças. Com exceção das coisas que me subtraíra, disponho apenas dessa caneta.
Assim dizendo, entregou-a tremulamente às frias mãos daquele homem, despido de outras opções diante das misérias de Severo.
- Dê-me apenas um tempo, a ver o que posso fazer.
A mão tremia, mas o gesto foi firme. A caneta deslizou pelas mãos do outro como quem saca uma navalha. Em um único movimento, certeiro e seco, cravou-a na lateral do pescoço de sua vítima — bem onde a pele pulsa sob a orelha, sobre a artéria que conduz a vida ao cérebro.
O som não foi de carne, mas de cartilagem cedendo com estalo. O sangue jorrou em espasmos, cada batida do coração empurrando a vida para fora como um esguicho desordenado. Severo levou as mãos ao ferimento, mas os dedos apenas afundaram na poça quente que lhe cobria o colarinho. O impacto veio rápido, como a mordida de uma serpente. A ponta da caneta mergulhou fundo entre o maxilar e a clavícula, rasgando pele, veia e artéria como papel úmido. O sangue jorrou, não apenas para fora, mas para dentro — afogando-lhe a garganta, escorrendo veloz pela traqueia ferida. Tossiu. Um som oco, afogado. A boca se encheu de um líquido quente e metálico.
Tentou puxar o ar, tragou mais sangue. Caiu, debatendo-se como quem se afoga em mar aberto. Mas o mar era ele mesmo. E nele se afundava, lento e final.
O tempo parou. Um grito, uma lágrima...o silêncio...o nada.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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