“É curioso, para não dizer trágico, observar que, enquanto o crime organizado se reinventa todos os dias, utilizando tecnologia de ponta, drones, criptomoedas, redes encriptadas e operações transnacionais, o Estado não estar aprisionado em uma lógica cartorária do século XIX, segundo a qual o que não estiver protocolado, timbrado e carimbado simplesmente não existe”.
Esse é um dos argumentos utilizados pelo procurador da República Thales Fernando Lima, no recurso do MPF (Ministério Público Federal) pela reforma da sentença da 2ª Vara da Justiça Federal de Araçatuba (SP), que absolveu o piloto e um passageiro de um avião apreendido com 400 tabletes de pasta base de cocaína, em abordagem ocorrida no aeroporto de Penápolis, em dezembro de 2024.
Conforme publicado na última quarta-feira (4), o juiz Luciano Silva, considerou a “inexistência de fundada suspeita provada para a busca veicular realizada”. Ao recorrer da decisão, o procurador cita que: "O raciocínio da sentença, se aplicado de forma geral, resultaria na completa paralisia da atividade policial no país”.
Ele argumenta que é preciso compreender que a exigência constitucional e legal de fundada suspeita tem por objetivo evitar abusos e arbitrariedades, protegendo os cidadãos contra intervenções estatais desproporcionais. Ainda de acordo com o procurador, jamais se exigiu — e nem se poderia exigir — que tais elementos estivessem previamente formalizados em procedimento burocrático.
“Mais do que isso, a própria natureza da atividade de inteligência, que precede a investigação formal, exige agilidade, discrição e dinâmica operacional, sendo absolutamente incompatível com a imposição de burocracia formal como condição para a atuação preventiva do Estado”, cita.
Cheque em branco
O membro do MPF acrescenta que “submeter a inteligência policial às mesmas amarras processuais da investigação criminal formalizada seria, além de tecnicamente equivocado, um verdadeiro cheque em branco às organizações criminosas, que naturalmente operam com níveis de mobilidade, flexibilidade e rapidez muito superiores aos da máquina estatal”.
Para ele, a sentença proferida pela Justiça Federal de Araçatuba, ao exigir um grau de formalismo dissociado da realidade operacional, declarando a nulidade das provas e a absolvição do acusado, incorre em grave violação aos princípios da proporcionalidade. O procurador destaca ainda que a introdução de quase meia tonelada de cocaína no mercado ilícito traria repercussão concreta e devastadora para a sociedade:
“É necessário refletir seriamente: quantas vidas poderiam ser ceifadas em razão da disseminação desse entorpecente? Quantas famílias seriam desestruturadas pela dependência química? Quantos delitos secundários — furtos, roubos, homicídios, violência doméstica e desagregação social — seriam fomentados como externalidade direta desse carregamento de drogas?"
Ainda de acordo com ele, o tráfico de drogas, especialmente em escala industrial, como no caso julgado, é um fenômeno que irradia efeitos deletérios sobre toda a coletividade. “Cada grama de cocaína que circula no mercado ilícito representa risco à vida, à saúde e à dignidade de centenas ou milhares de pessoas, especialmente das camadas sociais mais vulneráveis, que são as primeiras a sofrer os efeitos da disseminação da droga, seja na condição de usuários, seja na de vítimas indiretas da criminalidade fomentada pelo tráfico”.
Burocracia
Para o procurador, não é possível admitir que, diante da apreensão de quase meia tonelada de cocaína em uma única operação, se priorize uma interpretação maximalista das exigências formais relativas à documentação da atividade policial. Ainda mais quando há nos autos, de acordo com ele, elementos objetivos e suficientes que atestam a legalidade e a razoabilidade da diligência.
“Ora, ao adotar uma leitura que sobrepõe exigências burocráticas formais à proteção de bens jurídicos de primeira grandeza — como a saúde pública, a vida e a segurança coletiva —, a sentença viola frontalmente o comando normativo do art. 5º, da LINDB, segundo o qual ‘Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’”.
Por isso, ele considera que manter a sentença de absolvição representaria não apenas um gravíssimo precedente jurídico, mas também um verdadeiro atentado contra a própria noção de justiça e contra o pacto civilizatório que sustenta o Estado Democrático de Direito.
Verdade paralela
“Ora, pergunte-se: desde quando a ausência de catalogação procedimental de atos administrativos, que serviria tão somente para burocratizar aquilo que é evidente, tem o condão de anular a realidade?”, questiona.
E acrescenta: “Por acaso, passou a ser admissível, no processo penal, a construção de uma verdade paralela, autossuficiente, fundada não nos fatos, nem na confissão do acusado, nem nas toneladas de provas materiais, mas em um estéril e vazio formalismo?”.
Por fim, o procurador afirma que no caso, não houve qualquer violação às garantias fundamentais da defesa: “O réu sabia exatamente do que estava sendo acusado, teve pleno acesso aos elementos probatórios, pôde se manifestar sobre eles e, mais do que isso, admitiu, espontaneamente, sua responsabilidade penal”.
Negação
Diante de tudo isso, ele entende que insistir na tese de que houve cerceamento de defesa é não apenas juridicamente insustentável, mas um exercício de negação da própria finalidade do processo penal.
“É transformar o processo, que deveria ser um instrumento de realização da justiça, em um ritual autofágico, que se volta contra seus próprios objetivos e, ao final, serve apenas para premiar o crime e punir a sociedade”, conclui.