Por Thiago Torres Canossa
A noite abraçava as memórias do dia que a soturna residência insistia em silenciar. O vento ao final da estação não escondia os sinais de um inverno iminente, pronto a bater às portas, sussurrando frio para se anunciar. Severiana abriu o envelope, tomou a si a folha milimétrica e cuidadosamente dobrada, girou o papel entre os dedos como se cada dobra pudesse conter algo que os olhos ainda não sabiam decifrar. Com o polegar, rompeu a aba colada e deslizou lentamente a folha escrita a lápis. O olhar, dificultado pelas manchas nos óculos ressequidas, se deteve na primeira linha. O coração lhe batia apertado, descompassando o frágil movimento das mãos, quando o telefone da sala rompeu o silêncio com um toque estridente e desajustado. Com o susto, a carta caiu ao chão, onde sobre o gélido azulejo marfim repousou intacta.
Aquele som vertiginoso pareceu vir de dentro do próprio peito. Incomum receber telefonemas à hora dos dias como aquele. Ela hesitou por um instante, encarando o aparelho como se aquele toque fosse uma sentença. Levantou-se com dificuldade, cruzando o ambiente como se cada passo arrastasse o peso de uma vida inteira. Atendeu.
- Dona Severiana? Aqui é o Dr. Hermann Weiss, diretor clínico do Hospital Neurológico Heilanstalt Hadamar. Falo sobre o seu filho, Victor.
O médico falava em autêntico português. Entretanto, o sotaque alemão não lhe traía a origem. A voz era seca, calculista, quase mecânica. Não havia ali qualquer calor humano, apenas o timbre preciso de alguém que não admite falhas — nem nas palavras, nem nas pessoas.
— Ele...ele está bem? — Severiana apertou o telefone com as duas mãos.
— Houve um incidente. Durante a sessão de estimulação neuroafetiva — uma variante de eletrochoque experimental.
— Victor reagiu de forma extremamente agressiva. Quebrou os instrumentos, lesionou um dos residentes, e, ao final, tentou fugir da ala restrita. Foi contido após múltiplas doses de haloperidol. Está estável, sob observação.
Houve silêncio do outro lado.
— A senhora está me ouvindo?
— Estou — sussurrou ela, num fio de voz.
— Dadas as circunstâncias, recomendamos a suspensão das visitas por tempo indeterminado. Victor demonstra sinais compatíveis com transtornos neurodesviantes severos, possivelmente de espectro psicopático. Aconselho que a senhora se prepare para a possibilidade de internação permanente.
— Ele disse... alguma coisa?
Dr. Hermann fez uma pausa longa, quase impaciente.
— Antes da sedação, repetiu uma única frase, várias vezes. Anotamos: “Não foi culpa minha.”
Severiana sentiu o corpo perder o eixo. A frase, escrita no envelope. A mesma que agora voltava — viva — pela boca de um filho entre transe e tormento.
— Desligo por ora. Atualizaremos conforme os protocolos — concluiu o médico, e a linha foi cortada com um estalo seco.
Ela permaneceu ali, imóvel, com o telefone ainda junto ao rosto. Buscou com os olhos o papel ao chão. A carta ainda não lida, a dor ainda não digerida, e um passado que começava a pedir explicações. Na quietude que voltou a ocupar a sala, Severiana deixou-se cair sobre a poltrona novamente. Seus olhos, agora úmidos, fitavam o nada. E foi ali, naquela sala onde tudo começava a ruir, que ela recordou de como tudo começou.
Antes de Victor, antes mesmo do casamento, havia o tempo. Romualdo e Severiana foram filhos de décadas opostas — embora vizinhas no calendário. Seus mundos nasceram e se solidificaram nos bastidores tensos dos anos 60 e 70, sob a vigília dos generais e o silêncio das classes médias que aprendiam, à força, a temer o que pensavam. O país marchava ao som de hinos e botas. Após o golpe de 64, a normalidade foi reconstruída à imagem dos quartéis: disciplina, dever, progresso. Nos lares de classe média ascendente, como o da família de Romualdo, educar era sinônimo de calar, obedecer, alinhar-se. Crescer era tornar-se útil ao Estado — engenheiro, administrador, técnico. Nada que desviasse do trilho.
Romualdo internalizou essa lógica como uma equação. A vida era um problema com solução única. Por isso, entregou-se aos números — puros, exatos, imunes à dúvida. Engenheiro formado, depois auditor fiscal, sua trajetória era reta, funcional, sem desvios emocionais. Era assim que se fazia um homem.
Severiana, ao contrário, cresceu na casa ao lado do sussurro. Seu pai, comerciante conservador, rezava pelos militares, mas sua mãe lia Drummond à noite, escondida atrás da máquina de costura. Foi dela que Severiana herdou a paixão pelos livros e a desconfiança mansa diante das verdades impostas. Ela lia como quem fugia: Clarice, Gullar, Hilda Hilst, depois Beauvoir, Rosa, Graciliano.
Nos corredores estreitos da pequena cidade, os jovens se dividiam entre os filhos do dever e os filhos do desejo. Severiana orbitava entre os dois: obedecia por fora, sonhava por dentro. Cursou literatura, lecionou português técnico, mas sonhava com as artes. Lia como quem escreve sem papel.
A cidade onde se conheceram — cortada por trilhos de trem e pelas promessas da modernização — não oferecia espaço para rupturas. Havia missa aos domingos, procissão nas sextas-feiras santas, baile no clube da maçonaria. O diferente era olhado, e depois esquecido. Assim, quando se casaram, ninguém estranhou. Romualdo via nela refinamento e equilíbrio. Ela via nele solidez — uma estrutura onde poderia repousar os próprios abismos.
Enquanto isso, o país se movia. A década de 80 nasceu com o fim do regime militar já anunciado, embora ainda não vencido. Greves pipocavam nos centros industriais. As Diretas Já tomavam as ruas. A inflação galopava. O povo queria festa, mas vivia cansaço. A televisão tornava-se o novo púlpito. Surgiam os primeiros computadores. Chegava a ideia de que tudo seria possível — e por isso, nada mais precisava ser questionado.
Victor nasceu exatamente nesse hiato: quando a luta cessara, mas a paz ainda não sabia o que era. A herança que o formava não era só genética — era simbólica. De um lado, a rigidez de um pai forjado em ferro e fórmulas; de outro, a sensibilidade encastelada de uma mãe que nunca ousou romper com o que a prendia. Ambos sobreviventes de tempos distintos, ambos inábeis para a complexidade que Victor traria. Não porque fossem maus — mas porque eram, cada um à sua maneira, filhos de um tempo em que o mundo ainda parecia ter ordem.
Santa Áurea nunca foi grande. Município pacato que cresceu ao redor de uma estação ferroviária desativada, de ruas retas, sobrados simples e famílias que se conheciam pelo sobrenome e pelo passado. Por décadas, a cidade se orgulhava de suas virtudes: missa cheia, vizinhos cordiais, comércio local próspero. Não havia luxo, mas tampouco havia medo. O crime era exceção — e, quando surgia, vinha com nome e endereço.
Mas o tempo, esse conspirador silencioso, começou a fermentar mudanças que ninguém sabia nomear.
Vieram as antenas parabólicas, depois os televisores coloridos. As novelas do fim da tarde ensinaram às donas de casa o que era traição elegante. As rádios passaram a tocar não mais os boleros e os hinos do sertão, mas acordes ásperos, gritos abafados, distorções do rock que os jovens ouviam nos fones como quem mastiga um segredo.
Nos muros da escola apareceu a primeira pichação: "Escolas são prisões." Na praça da igreja, um adolescente de cabelos verdes acendeu o primeiro cigarro de maconha diante do coreto. Para os antigos, tudo aquilo parecia contágio. Uma doença cultural sem vacina, onde cada novo direito vinha com um novo desrespeito. E quando a recém promulgada Constituição garantiu mais liberdades civis, o que muitos ali enxergaram foi apenas um pretexto para o caos.
Romualdo observava aquilo com repulsa contida. Acreditava, como seu pai, que o mundo precisava de hierarquia, de lei, de mérito. Votava por obrigação, desconfiava do Estado e via o desgoverno como sintoma da frouxidão moral que se alastrava.
“Essa democracia vai acabar nos destruindo”, dizia, entre os dentes, lendo sobre desvios de verba e greve de servidores.
Severiana, em silêncio, enxergava o mesmo mundo por outras lentes. Havia nela uma simpatia envergonhada por aqueles que ousavam sair da linha. Via na juventude rebelde não um erro, mas uma possibilidade. E, em segredo, às vezes desejava ter tido essa coragem. Ela não dizia isso a Romualdo, é claro. Entre eles, o silêncio era o único acordo duradouro.
Foi nesse caldo morno de ordem em dissolução que Victor cresceu — ou melhor, fermentou. A cidade mudava, o país mudava, os tempos eram outros. Mas Romualdo e Severiana não.
Na alta infância, Victor ouvia músicas que ninguém compreendia, calava mais do que falava, e às vezes encarava os adultos com o olhar de um analista pronto a sentenciar. Severiana dizia que era introspectivo. Romualdo dizia que era insolente. Houve episódios pequenos, mas inquietantes. Agressões inexplicáveis contra colegas. Olhares fixos demais. Palavras ditas com frieza absurda, sem deixar de mencionar o hábito à rubra face de mostrar os dedos medianos rígidos a quem julgasse pertinente. Ninguém sabia ao certo a causa disso tudo, embora, aos primeiros sinais, os pais memorassem os termos inscritos no laudo médico do recém-nascido, sobre a aurora progressiva dos distúrbios do filho, constatados após o teste no puerpério. Aos poucos aqueles sinais mostrariam a face de um comportamento nada coloquial em ascensão.
Nos relatórios escolares, lia-se: "inteligente, mas isolado", "dificuldade de empatia", “desconcentrado” e "comportamentos disruptivos". O psicólogo do colégio sugeriu acompanhamento. Romualdo recusou: “Psicologia é desculpa pra falta de limite.” Severiana silenciou — como sempre.
A cidade, já cansada de suas próprias contradições, preferiu não ver. Afinal, havia coisas mais urgentes: desemprego, corrupção, os preços que subiam todos os dias. E enquanto o mundo fingia funcionar, Victor observava em silêncio, como quem prepara alguma coisa.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação