Por Fernando Sávio*
Numa tarde do outono de 1862, no vilarejo de Montemagno, na região italiana do Piemonte, um menino de 12 anos sai apressado, abrindo caminho entre a multidão, atraído pelo som de uma banda que toca na praça. Luigi é órfão e pobre. Tem olhos brilhantes, atentos, e em pouco tempo está diante das trombetas da banda do Oratório, vinda de Turim. Ali fica frente a frente com Dom Bosco e encontra no santo fundador da Congregação Salesiana um pai que o marcará para sempre.
Esse encontro ocasional entre o pequeno Luis Lasagna e Dom Bosco, está nos primeiros parágrafos do livro “O Realizador de Sonhos – Dom Luis Lasagna – Uma Biografia Nova”, escrita pelo sacerdote salesiano Gildásio Mendes dos Santos (Editora UniSalesiano Araçatuba, 2025, 164 páginas). O lançamento do livro neste mês de novembro em Araçatuba marca os 130 anos do falecimento de Dom Luis Lasagna e os 150 anos da Primeira Expedição Missionária da Congregação Salesiana na Argentina.
Um corte rápido na narrativa e a história dá um salto para 1876. Aos vinte e seis anos, Luis Lasagna já é um sacerdote salesiano. Está em Montevidéu, no Uruguai. Dom Bosco tivera um sonho que contou aos confrades numa sessão do Capítulo Geral da Congregação. Nele, ele vislumbrou um vasto campo para as missões em vários continentes, especialmente a imensa América. Enviou Luis Lasagna para liderar essa missão porque via nele um líder fiel, inteligente e excepcionalmente dedicado. Luis então atravessou o Atlântico para se tornar inspetor da missão salesiana no Uruguai, Brasil e Paraguai.
A distância oceânica é compensada por uma intensa troca de cartas. De Turim, D. Bosco, já com a saúde debilitada, acompanha todos os passos de seu filho espiritual: “Há vários meses que eu queria escrever-lhe, mas minha mão velha e preguiçosa me fez adiar esse prazer. Mas agora penso que o sol está voltando”, revela D. Bosco numa carta onde o alerta que “não faltarão dificuldades e até a malignidade do mundo” e ao mesmo tempo, o conforta: “Não se preocupe. Maria nos protegerá”.
A nova biografia de Dom Luiz Lasagna, escrita pelo Pe. Gildasio Mendes dos Santos, tem o grande mérito de jogar luz às cartas que ele trocava, com intensidade, como ferramenta de sua vida. Foram 236 cartas entre 1892 e 1895. Revelam seu intenso empenho missionário que superava todas as dificuldades, mas também sua humanidade: “Consultei alguns médicos, tomando medicamentos. Tive alívio para minha perna, mas não estou bem”, revela. Tinha a saúde frágil, marcada por uma série de problemas renais e artroses.
Quando chegou ao Uruguai, em 1876, tinha um projeto de evangelização e educação minuciosamente elaborado: aprender a língua, aproximar-se, respeitar os costumes, compreender o contexto político, as religiões, e inovar na educação.
O Colégio de Vila Colon, em Montevideo, rapidamente tornou-se referência por ter introduzido a competência científica e tecnológica nos estudos. Foi elevado à equiparação de Universidade Maior do Estado, com bacharelado em várias profissões. Diferente dos colégios católicos sisudos da época, o padre Luiz Lasagna recebia os alunos na porta da escola, sempre com um sorriso acolhedor, como aprendeu a fazer nos tempos do Oratório de Valdocco, em Turim. Além da matemática e geografia, os alunos aprendiam também a ser mecânicos, marceneiros, eletricistas e agricultores.
Era um sacerdote ligado às ciências numa época em que a própria Igreja se debatia com os positivistas. A formação em Letras na Universidade Turim, logo depois de sua ordenação, o aproximou de novas linhas de pensamento, que dominavam os debates da época, destacando a sociologia, economia e psicologia. “As ciências positivas bem dirigidas colaboram de modo inestimável para o crescimento de nossa fé. Então não tenha medo de abrir as portas da natureza aos teus alunos para que estudem as maravilhas criadas pelas mãos de Deus”, escreveu Lasagna numa carta ao Padre Julio Barberis.
Trouxe esses avanços para o ensino introduzindo artes e ofícios nas disciplinas, valorizando o teatro, a música e a recreação. Avançou com a criação inédita para a época de observatórios meteorológicos em diferentes regiões como a Patagônia, o estreito de Magalhães, os Andes, e depois Rio Negro e Petrópolis no Brasil.
Montou escolas profissionais e cultivou uva. Numa carta a Dom Rua, sucessor de Dom Bosco, ele revela que tinha começado a cultivar uva indígena, mas que “era muito aguada e não deu bom resultado”. Então trouxe mudas da Itália e França, com mais de 20 variedades. Os vinhos produzidos ganharam medalhas em exposições de Gênova, Chicago e Montevideo.
O dinamismo apostólico de Dom Luigi o levava a uma agenda intensa como celebrante, orientador espiritual, confessor, conferencista e orientador das Filhas de Maria Auxiliadora que também chegavam à América. Fundou escolas agrícolas e a Sociedade dos Oratórios Festivos, na periferia de Montevideu, para jovens pobres – muitos desamparados -, baseado na Sociedade da Alegria, de Dom Bosco, em Valdocco.
Era um viajante permanente, sem dias livres. Foi assim que em 14 de maio de 1882 chegou ao Brasil pela primeira vez depois de cinco dias de viagem num navio, de Montevidéu ao Rio de Janeiro. Tinha uma admiração pelo país, “um vasto império cuja extensão equivale a três quartos da Europa”, mas não deixou de observar as profundas desigualdades econômicas, o problema da escravidão e a política efervescente entre os que apoiavam e os que queriam o fim da monarquia.
Do Rio viajou para o Pará, num pequeno vapor, por 20 dias em mar e rios, chegando às portas da Amazônia, onde as vastas dioceses “eram maiores do que toda a Itália”. Conhecedor dos desafios e perigos das florestas, escreveu ao Papa Leão XIII, em março de 1893, pedindo autorização para que os sacerdotes pudessem usar o altar portátil “onde faltam igrejas e oratórios públicos” e que também pudessem ouvir confissões em longas viagens por mar e rios. Nessa época, já era bispo titular de Tripoli, nomeado pelo próprio Papa Leão XIII, nesse mesmo ano, em reconhecimento à sua grande habilidade diplomática no trato com governantes e autoridades, que resultaram numa aliança entre Brasil, Paraguai e Uruguai com a Santa Sé.
Outro marco histórico de sua vida missionária foi a chegada a Cuiabá, em 18 de Junho de 1894, depois de uma verdadeira epopeia entre o Uruguai e o Brasil, navegando pelo mar e os rios São Lourenço e Cuiabá, para fundar a Missão Salesiana de Mato Grosso, onde deu início à evangelização dos indígenas, concretizando um sonho de D. Bosco.
Um ano depois, em 5 de novembro de 1895, teve uma morte trágica viajando de trem entre Guaratinguetá (SP) e Juiz de Fora (MG). A colisão violenta entre dois trens, em meio a uma chuva forte, provocou a morte de cinco padres e quatro irmãs, além do foguista, próximo à Estação de Mariano Procópio.
A vida de Dom Luis Lasagna já foi biografada em 1970 pelo sacerdote uruguaio Juan Belza, num livro de 457 páginas intitulado “El Obispo Misionero” (Editorial Dom Bosco, Buenos Aires, 1970). Nessa nova biografia, o autor, Pe. Gildásio Mendes dos Santos se dedica, com afinco, ao estudo de suas cartas, que revelam a obra grandiosa que Luis Lasagna deixou como legado. Do mesmo modo, o leitor também conhece o homem de saúde frágil, temperamento forte, franco e direto, com uma incrível capacidade de atuar de maneira estratégica, enquanto ampliava a missão sonhada por Dom Bosco, unindo evangelização e educação.
Impressiona a visão educativa e empreendedora de Dom Lasagna, que segue atual até os dias de hoje. Seus métodos e o planejamento meticuloso de todas as ações fariam inveja aos modernos CEOs. Na sociedade atual, pessoas, grupos, empresas, e governos sonham em fazer grandes coisas, mas sonhos e realização nem sempre se alinham. Dom Bosco sonhou e Luis Lasagna plantou as sementes para a realização desse sonho, numa parceria perfeita. “Da mihi animas...” (Dai-me almas), era o lema de D. Bosco, inspirado em São Francisco de Sales. Ao seu filho espiritual também aconselhou: “Olhe cada coisa com os próprios olhos, esteja em todos os lugares, fale com todos os seus dependentes; eis a chave de todo o bem”.
Nessa “Biografia Nova”, o autor busca revelar um missionário a frente de seu tempo, envolvido com a prática da ciência em disciplinas escolares, o que era avançado para sua época. Padre Gildásio Mendes dos Santos, ele próprio, é um incentivador das novas tecnologias, com Mestrado e Doutorado em Realidade Virtual e Media Digital pela Michigan State University e Wayne State University. É autor de outros 28 livros em português, inglês e italiano e foi inspetor da Inspetoria Salesiana de Campo Grande, fundada por Luis Lasagna.
Fazem parte da inspetoria de Mato Grosso as cidades de Araçatuba e Lins, onde os sucessores de Dom Lasagna também chegaram. No texto de apresentação da nova biografia, o Reitor do Centro Universitário UniSalesiano, Pe. Paulo Vendrame, destaca que Dom Lasagna “lançou as pedras fundamentais de inúmeras obras salesianas no Brasil, no Uruguai e no Paraguai” e, em 1949, seu nome foi dado ao novo Ginásio Salesiano que nascia em Araçatuba. Muitas gerações depois, a pedagogia missionária de Dom Luis Lasagna continua atual, espalhada por um imenso território em vários países, fazendo jus ao seu título de Bispo da América.
*Fernando Sávio é jornalista, professor e cerimonialista do Centro Universitário UniSalesiano em Araçatuba, e Gerente de Comunicação da GS Inima Samar
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