Por Thiago Torres Canossa
Meu primeiro contato com o exercício da escrita se deu por volta dos meus 20 anos de idade, ao cabo das árduas leituras exigidas durante o curto de letras, na cidade de São Paulo, em meados do ano de 2007. O motivo do ingresso em uma graduação qualquer, àquela época eu não saberia te dizer, talvez por falta de opção, ou quiçá, total falta de vocação.
Creio que essa decisão tenha tido causa na paixão pelas desinteligências; isso, caro leitor, obviamente, no espectro mais metafórico possível. Lembro-me, ao primeiro contato obrigatório com as duras aulas de literatura clássica e gramática latina, majestosamente ministradas pela professora Elaine, à época, uma espécie de deusa romana revivida, tal qual Minerva, pronta para nos seduzir com os altos conhecimentos comuns às antigas letras do mundo ocidental.
A priori, lecionando Homero e sua gloriosa Ilíada, obra clássica da literatura, em cujo enredo os gregos lutavam na cidade perdida de Troia contra os filhos do Rei Príamo, em defesa à honra de Agamenon, subtraído de sua Helena por um príncipe Páris, irmão de Heitor, esse, único fugitivo sobrevivente da corte troiana, futuro fundador mitológico das terras da Hespéria, atual Roma italiana, cantada por Virgílio em seus versos, em símbolo à glória de uma Troia renascente.
Contemporaneamente, conheci Ulisses, herói do mesmo Homero, Odisseu eterno, um engenhoso semideus que, em regresso à sua terra após o feito em Troia, navega à Ilha de Ítaca, na mesma Grécia, onde o aguardavam seus súditos à companhia de sua rainha Penélope, não sem antes ser submetido às tribulações de deuses imaturos, imbuídos de todas as vicissitudes humanas, das quais a muito custo obteve êxito, vingando os inimigos políticos da corte sedosos por seu trono. Recomendo a leitura.
A tempo, com o apoio discente, aos poucos conquistava a compreensão e me adaptava à complexa rigidez dos termos, dos vocábulos arcaicos, dos contextos e da intensa sabedoria guardada naqueles versos de tempos imemoriais, escritos por quem não se fez conhecido a qualquer um hoje ou há pouco vivo, salvo pelo alto símbolo da sabedoria lavrada. Lendo todos os dias, sorria, compreendia e me encantava.
Com novos ares, redigia cartas aos meus pais, distantes em estrada, porém sempre pertos em pensamento. Escrevia: “Mas quando surgiu a Aurora, de dedos róseos, trazendo luz aos mortais, o generoso Telêmaco despertou de seu leito macio. Vestiu-se com roupas finas, pendurou ao ombro a espada afiada e prendeu belas sandálias aos pés. Saiu então de seus aposentos, como um deus em sua presença”
Nesse hábito, tomaram-me por doido. No telefone, a ligação: “Você está bem?”. O sacrilégio de outrora tornou-se um primoroso prazer. Escrever tal qual os antigos, ainda que com isso ao leitor não me fizesse ser compreendido. Meus leitores eram apenas os amigos, pessoas, creio, que por compaixão apenas me liam.
Aos poucos, o hábito da escrita foi adquirindo ares de vocação, como o despertar de um chamado desconhecido, percebido dia a dia ao inconsciente como a sombra de um instinto. A quem nunca antes conhecera o prazer de tal hábito, agora, lia freneticamente, sorvendo na fonte dos clássicos o sabor da prazerosa arte de amplificar os horizontes do pensamento.
Com o tempo, veio o distanciamento. Trocava os encontros, as baladas, as mulheres e os churrascos pela boa e silenciosa escrita. Não eram poucas as dificuldades. Escrever é um exercício de transposição do pensamento com olhar distinto, afinado para as coisas mais corriqueiras da vida, adornadas pela sutil e oculta beleza nas entrelinhas das palavras apostas ao papel.
Mais difícil era encontrar a originalidade ante o contato com as sublimes referências lidas nos autores consagrados. No entanto, insisti. Tornava-me uma pessoa melhor, mais consciente e sensível às coisas aparentemente banais. Ao cabo dos anos, tomei o hábito por razão existencial.
Tudo o mais era supérfluo quando comparado à chancela eternamente viva que eu deixaria após a minha passagem, sem que com isso ambicionasse ao dinheiro, à fama, ou a qualquer desses méritos fugazes almejados por muitos de nós, pobres mortais. Apenas escrevia, por puro amor à magia da linguagem e ao poder da compreensão, que conecta vidas, empreende força ao autoconhecimento e franqueia um pouco de paz à majestosa tarefa de interpretação.
Afinal, nesse mundo não passamos de meros intérpretes, cada qual com seus textos, significantes na condição de referências de mundo, sentimentos e objetos processados pela mente com os sentidos do corpo humano, quais nos ensejam a base de toda cognição, fruída nas alegrias e nas tristezas de um mundo malsão.
Nessa trajetória, em momento-chave, tive contato com dois autores fundamentais para a desenvoltura de uma forma mais autêntica à expressão do meu pensamento. Manoel de Barros e Paulo Leminski, ambos renomados escritores brasileiros, hoje falecidos, em cujas obras pude aprender um pouco mais sobre o poder da síntese e das preciosas insignificâncias às quais não nos detemos, porém, imprescindíveis ao olhar do poeta.
Com o tempo, o corpo dos escritos foi tomando volume razoável em arquivos e papeis. Participei de concursos literários, nacionais e regionais, dos quais felizmente me tornei vencedor, sem que nisso acreditasse, pois, conforme antes dito, sempre ignorei as luzes de qualquer vocação.
Ainda hoje, aos 37 anos de idade, carrego comigo o hábito diário da escrita, sempre que impossível. Sento-me ao campo mais próximo e tão somente penso, vasculhando às notas os vestígios dos dias passados, em silêncio, e quando mais inesperado, uma chama se acende, destaco uma parcela de meu mundo, uma experiência viva, transposta ao papel em palavras cruas aptas tão somente a serem lidas.
Por enquanto, dois livros escritos, almejando que esse texto possa ser parte de um terceiro, seguido por muitos outros, em um futuro próximo, hoje ausente, até uma provável e repentina despedida.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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