Por Thiago Torres Canossa
Inscrito em tinta preta, às letras limpas e bem delineadas, com o cuidado de que a mensagem fosse claramente compreendida pelos espectadores de uma iminente reunião empresarial prestes a iniciar, na lousa, ao lado de um timbre comercial sobescrito pelas iniciais “A.S.”, o bordão:
"Toda beleza duradoura vem da alma. A Aura Serena não inventa aparências — ela escuta essências".
A sala, ampla e iluminada com luzes brancas frias projetadas a seis mil e quinhentos kelvins, não dava margem a qualquer sombra que intentasse ofuscar a atenção dos colaboradores que em breve a comporiam, sentados em cadeiras aconchegantes ao redor de uma mesa ampla em vidros escuros, sobre a qual descansavam pequenas garrafas de água gaseificada e blocos de notas ladeados por canetas azuis baratas.
Ao cume do quadro-negro, o relógio digital marcava em cores vermelhas o horário, que caminhava aos lentos passos ao termo inicial do encontro: 17h55.
Aura Serena. O nome da empresa de cosméticos fora engendrado pelos sócios, com vistas a melhor traduzir o espírito da marca ao público-alvo, consumidores de meia-idade inconformados com a beleza estética que se esvai sem explicar, a partir dos primeiros sinais da recém-nascida feiura, destino a todos certo e improrrogável.
A empresa, então em boa fase, compunha-se de vários colaboradores, cada qual responsável por um cargo, com vistas ao pleno desenvolvimento da gestão e operação respectiva, dentre os quais, presidente, administradores, contadores, secretários, atendentes, operadores de TI e vendedores executivos.
Didi Florença era mulher de meia-idade, há pouco contratada para a vaga de vendedora. Aos quarenta anos, detinha o perfil requisitado pelo quadro de recursos humanos, em idade condizente aos consumidores em potencial, haja vista a verossimilhança encomendada mediante o pagamento a caríssimas ideias publicitárias, para maior afinação ideológica entre marca e usuário. Alta, magra, de longos cabelos pretos lisos e alva pele, conquistara o emprego e o apreço dos colegas por falta de opção. Solteira, com frequência era alvo de cantadas indiretas por parte de homens e mulheres no expediente, implicitamente sedentos aos beijos e carícias daquela aura versátil, embora discreta e misteriosa. Adriana Florença desde a infância adotara Didi como cognome, nomenclatura composta por um certo minimalismo semântico e fonético, fácil de assimilar, assim como as suas habilidades e talentos para apreender a natureza das coisas com mínimo esforço.
No fundo, interessava-se por outras coisas. Comunicativa como nenhum outro servidor daquela firma, era rapidamente requisitada à companhia dos demais, nos intervalos das palestras, entre um café e outro, na cozinha, com os quais sem medo conversava, promovendo encanto e sedução até aos celibatários. Amava os livros tanto quanto a tara alheia pelos prazeres da carne. Nas horas livres, era mais o que fazia. Lia. Lendo se desentendia e se apegava ao instante de transformação, após o qual lhe vinha a certeza de não ser mais a mesma pessoa de então. Como prova disso, ostentava em seu antebraço direito uma tatuagem com insígnias das legiões antigas, adornadas com a seguinte inscrição latina: "Litterae sunt ars transmutationis interioris” . Em vernáculo: “A literatura é a arte da transformação interior”.
Arriscava um poema quando em vez. Não gostava de lirismos. Escrevia o que pensava, tentando fugir às regras da gramática, embora delas tivesse amplo conhecimento. Sabia da importância das regras, mas delas buscava se afastar tanto quanto possível, desconstruindo os pensamentos que julgava simplórios, por vezes vulgares, das pessoas com as quais convivia, pouco nutridas à prática da reflexão.
O relógio marcava 18h em ponto. Sala cheia, composta por várias pessoas, devidamente trajadas, que aguardavam o integral comparecimento dos restantes. Os homens, em grande parte, vestiam terno, gravata e calças de fino linho. As mulheres, na mesma linha, sorridentes e maquiadas, trajavam camisa sobre saias sociais, à vista de longas meias pretas transparentes, deixando à mostra as pernas depiladas entre os pés ocultos pela virtude dos altos saltos.
18h40. Despida de qualquer remorso ou preocupação, Didi Florença, em jaqueta de couro preto, calça jeans e bota militar, abre a porta sem pedir licença. Calmamente, toma seu lugar à mesa, pra início da reunião, com exposição de Calo Paranhos, diretor de Marketing.
Paranhos, como era conhecido, havia sido o autor da frase exposta na lousa. Não se sabe se copiada ou de sua própria autoria. Florença, entretanto, era convicta sobre a incapacidade daquele homem à altura do excerto escrito. Todos presentes. Sem qualquer cumprimento ou boas-vindas, como quem aguardava desesperadamente o momento para se expor.
- Toda beleza duradoura, na verdade, vem da marca. É ou não é? – disse Paranhos.
Nesse introito, Calo passou a discorrer sobre as teorias marqueteiras com as quais marcava o seu relativo sucesso na empresa. Falava sobre o comportamento, o efeito das palavras aliado à psicologia das cores, sem esquecer de alguns breves apontamentos no que diz respeito a noções de retórica aplicada às vendas.
- A interlocução nas vendas deve ser clara. A beleza é passageira. Isso é um fato incontestável, entretanto, passível de se transmutar, a nível de conceito, com uma adequada retórica bem administrada ao consumidor. Vê-se que o logotipo da marca entorna a cor vermelha, não à toa. Vermelho é a cor da vida, simboliza o sangue que pulsa em movimento duradouro, conquanto seja possível a busca pela felicidade. Isso, porém, enquanto houver beleza, sem a qual, a existência se torna um trapo. Afinal, o belo não tem preço a quem disso se convence e se dispõe a comprá-lo. Eis o mote de nossas vendas dos quais todos vocês, sem exceção, devem se conscientizar.
- Blá...blá...blá – Didi deixou escapar entre uma breve pausa de Paranhos, por todos ouvidos.
19h. Um instante de descontração entre os ouvintes que dirimiam dúvidas com o palestrante. Didi olhou detidamente para as pequenas bolhas gaseificadas que se formavam na pequena garrada d’água à sua frente. Notou que elas iam, viam, subiam e desciam, morrendo a cada átimo de segundo para a formação de novas bolhas, visivelmente distintas, cada qual em distinto tamanho e espessura. A observação a conduzia à noção de frágil fugacidade, enquanto o ambiente – leia-se a água continentecontinuava indiferente a todo esse processo. Pegou a caneta e rascunhou no bloco de notas em cuja capa se inscrevia “Aura Serena”.
“Eram todos felizes, na ilha da beleza. Onde tudo era bonito, as árvores, o mar, a praia, os peixes e a comida que serviam sobre a mesa. Os habitantes eram os “Aureades”, pessoas de considerável estética que se comunicavam na língua há muito denominada “Aurellin”. Embora rústica, a língua remontava às origens nórdicas, da qual se ramificou, em época longínqua, em que a ilha fora colonizada pelos povos antigos da Escandinávia. Guardava intacta termos e conceitos trazidos por aqueles aventureiros, altos, esbeltos, de pele em alva cor e olhos tão claros quanto o mar da ilha nos dias de verão, que se prolongavam durante o ano inteiro. Sabendo que a língua se cria e se condiciona a partir dos elementos concretos que a referenciem, “Aurellin” não dispunha de um conceito antagônico à beleza em seu vocabulário, posto que a feiura lhes era desconhecida. Até que um dia, tão normal quanto os outros que viriam durante a eternidade, a ilha fora invadida por povos desconhecidos. A fisionomia daquelas pessoas trazia medo e desespero aos habitantes, ao primeiro contato com olhares e trejeitos distintos dos locais. Não eram belos. Pelo contrário. Entretanto, não dispunham de palavras para a real descrição daqueles forasteiros. Com o tempo, o medo se esvaiu por força da adaptação. Passaram a conviver harmonicamente com aquele povo de aparência vil, embora muito simpático, empático, criativo e verdadeiro. Ali, levaram novos conceitos que se forjaram à língua “Aurellin”. Levaram também a força da literatura sobre estética do feio, com a qual, pouco a pouco, palavras como “harmonia”, “leveza”, “paz”, “fugacidade” e “feiura” passaram a constituir o dia a dia do vernáculo. Mais tarde, ficaram conhecidos por “Aureolos”, povo reluzente, de alma áurea, digno de avançada virtude, despreocupada com o conhecido efêmero. Como ignoravam a beleza como estética, ensinaram-lhes que o belo é interno. O resto, é só inferno. A beleza não vivera para ver a glória da feiura. Veio o desenvolvimento. Todos viveram feios e felizes, naquela ilha, de belíssimas raízes, que se enfeiou, pra bem de todos. Fim”.
Fechou os olhos e o bloco de notas com firmeza. O estalido seco do espiral contra o papel soou mais alto do que deveria. Abriu os olhos. Estavam todos no mesmo lugar. Calo Paranhos ainda ajeitava a gravata, em frente à lousa vazia. O relógio marcava 17h56. Nada havia começado.
Um silêncio tênue antecedia o início da reunião. Ela olhou ao redor, sentiuse estranhamente desperta. No exato momento em que devolvia o bloco à mesa, um dos colegas — um vendedor executivo de sorriso pálido — virou-se para ela, com simpatia:
— Belíssimo traje, Didi.
Ela olhou para si. Vestia camisa branca, saia social e meias pretas — igual às outras mulheres da sala. Nenhuma jaqueta. Nenhuma bota militar. Nenhuma rebeldia visível. Apenas o protocolo.
Fechou os olhos novamente, por um segundo a mais, desta vez acordada. A reunião, enfim, começaria.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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