Opinião

A matemática criativa dos 100 dias de governo

"a forma como um governo começa muitas vezes determina como ele será percebido - mesmo quando a realidade é bem diferente"
Da Redação
23/04/2025 às 15h54
Foto: Divulgação Foto: Divulgação

Por Jonathas Magalhães

 

Os primeiros 100 dias de um governo sempre carregam um simbolismo político e comunicacional poderoso. Trata-se de um tempo curto, mas suficiente para provocar impressões duradouras - algo que a psicologia comportamental já comprovou com clareza.

 

Daniel Kahneman, por exemplo, explica como nossas decisões são influenciadas por atalhos mentais que facilitam julgamentos rápidos. No caso da política, isso se traduz em algo simples: a forma como um governo começa muitas vezes determina como ele será percebido - mesmo quando a realidade é bem diferente.

 

É exatamente aí que mora o risco.

 

Muitos prefeitos e gestores, conscientes dessa força simbólica dos 100 dias, tratam esse período como um verdadeiro espetáculo de marketing. Não como uma amostra honesta do que virá, mas como um esforço concentrado em parecer mais do que realmente são.

 

E, para isso, vale de tudo: apropriação de obras herdadas, reinaugurações simbólicas, balanços inflados, promessas recicladas e até supostas “economias” que, quando confrontadas com os dados públicos, revelam o oposto.

 

A lógica é a mesma de alguém se preparando para um primeiro encontro:

 

Aluga um carro, esconde a calvície com uma peruca, memoriza palavras difíceis para parecer mais inteligente, usa o cartão de crédito emprestado para bancar o jantar e - por algumas horas - encarna uma versão melhorada de si mesmo. Funciona? Talvez. Mas até quando?

 

Na política, esse teatro costuma durar até o segundo trimestre de governo.

 

Podemos ver isso claramente quando uma prefeitura anuncia, com grande alarde, o “enxugamento da máquina pública” nos primeiros 100 dias, destacando a redução do número de secretarias como prova de austeridade. O que os releases não mostram - mas os portais da transparência evidenciam - é que, apesar de menos pastas, o custo total com cargos comissionados e funções gratificadas aumentou.

 

A matemática criativa transforma cinco secretarias em três, mas multiplica assessorias especiais, coordenadorias e diretorias, inflando a folha enquanto vende economia.

 

Como nos lembra Pierre Bourdieu, o poder simbólico funciona justamente quando consegue “fazer ver e fazer crer” - mesmo quando os números reais contam outra história.

 

Acontece que a realidade administrativa cobra coerência. Não há maquiagem que sustente, por muito tempo, a ausência de planejamento, entrega ou propósito. E essa ruptura entre imagem e prática se torna cada vez mais evidente, especialmente em tempos de hiperconectividade e monitoramento digital.

 

Mais do que uma crítica à encenação dos 100 dias, este texto é um convite à reflexão sobre o que está sendo comunicado - e com qual finalidade. Porque não há problema em apresentar resultados iniciais, comunicar avanços ou marcar presença institucional.

 

O problema está em fingir que a gestão começou do zero, apagar o passado para parecer inovador ou forjar entregas que não aconteceram.

 

Esse tipo de comunicação performática, que vive de manchete e não de coerência, é o retrato do que Zygmunt Bauman chamaria de modernidade líquida: tudo muda de forma com facilidade, mas nada se sustenta.

 

E é por isso que a primeira impressão não pode ser confundida com reputação. A reputação exige tempo, constância, verdade. E, como bem ensina Simon Sinek, as pessoas não confiam apenas no que você faz - mas no porquê você faz.

 


Quando o “porquê” desaparece, resta apenas o marketing. E marketing, por si só, não governa.

 

Os 100 dias importam, sim. Mas apenas quando são o começo de algo maior - e não o auge de uma ilusão cuidadosamente construída para encantar o público e enganar o tempo.


Jonathas Magalhães especialista em marketing político

 

** Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.

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