Você sabia que em Araçatuba (SP) existe um projeto social que ajuda famílias carentes a apreender como se alimentar de maneira saudável, reaproveitando alimentos que seriam jogados no lixo? Pois é, ele existe e tem nome: “Cozinha saudável na comunidade”. Trata-se de uma iniciativa da técnica em nutrição Sandra de Melo, 47 anos, moradora no bairro Araçatuba G, na zona lesta da cidade.
Ela foi uma das convidadas para contar a experiência no lançamento do projeto Sesc Mesa Brasil, na última quinta-feira (9), já que o programa também tem como base, o reaproveitamento dos alimentos que seriam descartados por supermercados e outros estabelecimentos, por não terem valor comercial, apesar de serem úteis para matar a fome de quem não tem o que comer.
E Sandra dividiu o palco com nada mais nada menos que a chef de cozinha Cíntia Sanches, que já participou do programa Master Chef e é uma das idealizadoras do coletivo “É tudo pra ontem”, no qual ela ajuda a cozinhar para pessoas em situação de rua em São Paulo.
Drama
Sandra contou que a primeira experiência dela na cozinha foi aos 11 anos de idade, forçada pela morte do pai. Na época, ela cuidava dos quatro irmãos mais novos e ficou com a missão de cozinhar para eles, pois a mãe dela teve que arrumar um trabalho para sustentar a família.
Sozinha na companhia dos irmãos, que reclamavam de fome, ela olhou no armário e só havia arroz. Na horta que o pai cultivava no quintal, só havia cebola. E foi isso que ela e os irmãos comeram: arroz com salada de cebola.
Sandra comentou que naquela época, não havia instituições como o Sesc que ajudavam a família se alimentar. A ajuda, quando tinha, era de vizinhos que levavam alguma coisa para eles comerem. E ela fez dessa dificuldade, profissão.
A experiência com a cozinha e a vontade de aprender sempre mais, a fez se matricular no curso de técnica de nutrição do Senac e, passou a desenvolver receitas e fazer doces para vender. Também passou a montar marmitas e em 2019, virou empreendedora individual do ramo de alimentação.
Solidariedade
Ainda de acordo com Sandra, andando pelo bairro, ela viu a necessidade de melhorar a alimentação das pessoas e, baseada na experiência vivida por ela na infância, decidiu montar o projeto, “Vida saudável na comunidade”, que funciona no Centro Comunitário do bairro. “Eu sempre passava lá na frente e via que precisava fazer algo para ajudar as pessoas carentes”, contou.
De acordo com ela, o objetivo do projeto é ensinar as mulheres a se alimentarem de forma saudável e aproveitarem tudo dos alimentos como talo, folha, casca, usando a criatividade. Atualmente o projeto atende sete famílias e ela conta com 15 alunas. “Hoje eu fico muito feliz, pois muitas meninas do projeto não sabiam nem cozinhar”, revelou.
Alimentos
Sandra tem o apoio do Supermercado Rondon, que uma vez por semana disponibiliza para ela, frutas e legumes que seriam descartados por não terem valor comercial. Esses alimentos são levados para o projeto, onde ela conta com o auxílio de uma assistente para higienizá-los.
As aulas são ministradas às quintas-feiras, durante duas horas e meia, período em que as participante aprendem a desenvolver receitas com esses alimentos. “Sou uma pessoa muito curiosa, sempre estou pesquisando, eu tenho facilidade para montar receita em versão mais saudável”, contou, lembrando que sempre ouviu da mãe dela, que alimento não se joga no lixo, pois com o que é desperdiçado, poderia estar alimentando outras pessoas.
Os alimentos que sobram são transformados em uma feirinha, que as participantes do projeto podem levar para casa, para fazerem as próprias receitas.
Além disso, Sandra atende outras sete famílias carentes oferecendo alimentação. Ela comentou que a maioria é família com várias crianças que se alimenta apenas com o básico. Inclusive, ela já ouviu uma dessas crianças dizer que nunca havia comido uva.
Hoje, além do projeto, Sandra faz parte do Conselho Municipal da Mulher e viu a necessidade de ter um profissional psicólogo para auxiliar no projeto. Ela conseguiu esse profissional com a Casa Maria e também conta com a ajuda de um nutricionista que apoia o projeto.
Oportunidade
Sandra fez questão de agradecer à oportunidade proporcionada pelo Sesc, para poder falar um pouco do projeto desenvolvido por ela na periferia da cidade, citando que foi a primeira instituição que abriu as portas com o convite. “É difícil, uma mulher preta, da periferia, ter oportunidade”, destacou.
Quem também aproveitou a oportunidade para falar para a comunidade araçatubense foi a chef Cíntia Sanchez, que abandonou o jornalismo para cuidar pessoas fazendo o que mais gosta, que é estar na cozinha.
Ela descobriu esse gosto ao participar de um projeto social em São Paulo, onde auxiliava uma merendeira que cozinha para as crianças da instituição. Assim como Sandra, o desafio era aproveitar a pouca variedade de alimentos disponíveis para variar o cardápio.
Foram dois anos e meio nesse projeto atuando de forma voluntária, período que proporcionou relações de amizade com pessoas que viviam no fluxo da cracolândia, fazendo nascer a Cíntia cozinheira, como ela mesmo descreve. “Através da afetividade, dos laços, porque a cozinha é um lugar transformador, eu virei cozinheira”, afirmou.
Ser útil
Cíntia contou que participando desses projetos sociais relacionados à alimentação, ela percebeu que poderia ser útil, fazendo o que sabe, de forma muito simples. Ainda de acordo com ela, a metodologia programa Sesc Mesa Brasil é importante por dar acesso à educação e o cruzamento entre as classes.
A convidada comentou que trabalhou com chefs da alta gastronomia, tem o sonho de alimentar as pessoas e utiliza o poder possui junto à comunidade. Para Cíntia, reaproveitar os alimentos que seriam jogados no lixo, que é a base do projeto Mesa Brasil, é sonhar na possibilidade de acabar com a fome no mundo. “Não é porque eu reaproveito alimentos que eu não faço alta gastronomia não, eu faço alta gastronomia sim, com muito propósito, com muita qualidade”, afirmou.
Ela comentou ainda ficar muito feliz em saber que a rede que se constrói para se promover uma alimentação saudável vai ficando cada vez mais potente, com pessoas interessadas em ouvir falar.
“Alimentação e solidariedade, o ato de comer e partilhar alimento, vem da formação de uma comunidade, da formação de uma rede de pessoas que estão interessadas em suprir o que é necessário para a vida humana”, destacou, acrescentando que a fome não tem cor, não tem partido, mas tem pressa e urgência, o que é a inspiração para o nome do projeto que ela participa.