Por Thiago Torres Canossa
Novos tempos traziam as tendências que embalavam o ritmo das vidas no pequeno Município de Santa Áurea. Vivia-se a época de relativa estabilidade política e social. Agora, o país era regido sob nova ordem. Com a nova democracia, assegurada pelos auspícios de uma nova Constituição, o país flutuava em moderada paz, recheado de todas as garantias contingentes, assegurando aos seus cidadãos a persecução de seus mais particulares fins, sem qualquer resquício das arbitrariedades de um passado pouco remoto. No plano internacional, a queda do Muro de Berlim em 1989 e o colapso da União Soviética em 1991 marcariam o simbólico fim da Guerra Fria, abrindo caminho para a hegemonia do modelo capitalista ocidental. Os anos 90 testemunhariam o avanço da globalização, conectando culturas, mercados e sistemas políticos de forma inédita. A hegemonia da cultura estadunidense se espalhara em escala global por meio de filmes, música pop, moda e tecnologia, fatores de forte influência a uma nova geração, na qual Victor Selvian Neto se inseria.
Inevitável, porém mister que se esclareça. Fato é que a história do mundo se perfaz no clico infinito das gerações. Sob a comunhão das velhas e mais recentes experiências de mundo, as pessoas acabam por se adornarem aos preceitos, conceitos e preconceitos atinentes ao espírito social que lhes é contemporâneo, numa espécie dialética natural, ao choque de binárias ideias que se digladiam, se transmutam, e, no percurso do tempo, pacificam-se, para a glória das novas e desespero das passadas gerações, em cujo esplendor vangloriavam a era analógica deixada para trás.
A popularização dos novos meios de comunicação, embora tardio se comparado aos grandes centros do país, chegava aos lentos passos às famílias de médias posses em Santa Áurea. No setor em que desempenhava suas funções, alocado em um prédio comercial de saudosa arquitetura, Romualdo se conformava com a premente necessidade de se atualizar perante os novos maquinários obrigatoriamente dispostos pelo Estado. Habituara-se à lavratura dos autos fiscais com a velha Olivetti, adquirida em parcelas que lhe eram pouco acessíveis, em uma época em que a computação moderna era incipiente e as máquinas de escrever elegiam-se como o auge da tecnologia no que dizia respeito aos instrumentos aptos à maximização do tempo, pelo menos aos trabalhadores que veiculavam o ofício por meio das palavras escritas.
Autodidata que era, em pouco tempo, Romualdo detivera o conhecimento prático para o manuseio do primeiro modelo de computador pessoal, com o qual otimizava a produção e o recolhimento de tributos à União. Nisso, ganhou espaço, foi promovido com um recheado abono salarial, sem falar na bonificação desvinculada da remuneração básica, angariada a cada bimestre, possibilitando-lhe nova margem de conforto à esposa e a seu filho Victor, a quem, sem pensar duas vezes, presenteou com um IBM 386, visando com isso investir na efetiva integração do jovem rapaz ao mundo digital, que se aproximava de braços dados com a promessa de oportunidades e transformação.
Severiana via tudo com bons olhos. Curiosa que era, conhecia o assunto e já o vislumbrara nas leituras em obras de ficção científica que, com certa margem e senso, profetizavam a chegada da era digital. Lia nos jornais diários os artigos científicos sobre tecnologia, adequava as informações ao seu acervo de conhecimento, acreditando numa nova era, em que a informação se tornaria a chave da evolução social, com grande expectativa de progresso aos que se propusessem adaptar ao melhor uso dos novos dispositivos, que aos poucos iam se tornando mais acessíveis. Além disso, conjecturava a otimização de seu trabalho e pesquisas acadêmicas, o que lhe facilitaria a vida, concedendo-lhe tempo apto para o ócio de suas leituras à contemplação das coisas aparentemente pequenas, e aos hábitos criativos, coisas de que gostava mas que lhe escorriam pelas mãos em virtude do tempo quase que integralmente dedicado ao trabalho, então manuseado aos instrumentos que nem de perto se comparavam à agilidade proposta pelo processador de um cérebro artificialmente criado, ora denominado computador.
Victor Neto dividia o dia entre as obrigações escolares e as aulas de inglês. Preocupados com o seu futuro, pois não tiveram as mesmas oportunidades que ao filho seriam possibilitadas, os pais eram unânimes na decisão de preencher o dia a dia de Victor com atividades variadas, a fim de lhe promover no mais alto grau possível e de forma mais completa a educação. Já nos primeiros anos da adolescência, o garoto demonstrava sinais convincentes de um pequeno progresso contra os claríssimos distúrbios agressivos e antissociais preocupantes até determinada idade. Um pouco mais maduro, Victor desempenhava suas atividades com excelência. Naquela idade, já dispunha de porte mediano. Como a mãe, era belo em seus contornos bem tracejados, tal qual as linhas rascunhadas por um artífice experimentado, que, satisfeito com o que veria se tornar uma obra-prima, certo de seu talento, sorri por dentro. Tinha ampla facilidade com as letras e com os números. Mesmo sem estudar, tirava boas notas, sem que a isso fosse necessário o esforço comum aos demais colegas de escola. Era bom nos esportes. Corria com agilidade, pensava rápido e com distinta habilidade demonstrava primor na resolução de seus problemas corriqueiros, embora ainda preocupassem os pais a personalidade fria, quieta e irritadiça, mormente quando confrontada em suas certezas ainda não completamente definidas pela jovialidade.
Como não tinham tempo, saindo cedo e tarde regressando à casa do trabalho, em pouco tempo preenchiam a escala de obrigações de Victor com aulas de música e Aikidô. Severiana sempre dizia que, um dia, se fosse mãe, matricularia o seu rebento nas aulas de artes marciais nipônicas, em prol da disciplina e da espiritualização típica dos descendentes dos samurais, o que foi feito, para a alegria do casal, sempre receptivo aos elogios dos professores em torno do desempenho harmônico e estratégico de Victor.
Nas lacunas do tempo de que dispunha, o casal se sentava à mesa de jantar com o filho para lhe falar sobre as coisas de seu tempo, relações e comportamento. Na medida do possível, eram presentes, aproveitavam cada ocasião em que se reuniam para lhe ministrar reforços com as disciplinas da escola. O pai lhe falava sobre a importância do raciocínio-lógico e, com ares de filósofo, explicava-lhe as nuances no trato com a matemática dos números, sem deixar de lado a menção à aplicação prática respectiva. Pouco a pouco, entre outros, apresentara-lhe Pitágoras, Platão, Euclides, Arquimedes, Descartes e Pascal.
- “As estrelas. Elas não tremem ao acaso. Cada brilho, cada sombra, cada intervalo entre os astros obedece a uma harmonia que não se vê com os olhos — mas se sente na alma quando ela aprende a contar. Pitágoras ouviu a música do cosmos e percebeu que tudo vibra em número, tudo é ritmo — e Platão, seu discípulo na eternidade, nos disse que o mundo visível não passa de reflexo de formas perfeitas, matemáticas, imutáveis. Quando traçamos um triângulo no chão, não desenhamos um triângulo qualquer: tocamos a eternidade. Euclides fez da geometria um templo. Com régua e compasso, ergueu catedrais de lógica. Arquimedes, do fundo de seu banho ou da ponta de sua lança, mostrou que força, volume e equilíbrio são apenas expressões do mesmo espírito — o espírito do número. E então veio Descartes, que ousou sonhar com um mundo em que o pensamento matemático pudesse ser o alicerce da certeza. Ele deu ao espaço um plano e ao corpo uma equação. Pascal, inquieto, viu que até o acaso tem leis, e que a incerteza pode ser medida. Já Leibniz, com sua sede de ordem divina, viu no cálculo e no sistema binário um idioma secreto da criação — tão simples quanto profundo. Kant, com seus olhos voltados para dentro, mostrou que antes mesmo de contar, nós já sentimos o tempo e o espaço como moldes da razão. E Russell, na alvorada da lógica, tentou construir um mundo onde o pensar fosse mais firme que o chão. Mas foi Gödel… ah, Gödel… quem nos lembrou que há sempre um mistério inalcançável, um teorema que escapa. Que mesmo quando pensamos ter apreendido tudo, o universo nos sussurra: 'há mais'. Vê, então, por que amo a matemática? Ela não é uma prisão fria de números — é a chave de um jardim oculto, onde o real e o ideal dançam em silêncio. Ela revela que o mundo não foi apenas criado: foi arquitetado. E em sua arquitetura, há beleza — a beleza de uma mente que conta as folhas, mede os ventos e sonha com o infinito" .
Não era pra menos. Romualdo amava os números e toda teoria que lhes era correlata. Engenheiro de formação, encantava-se em expor explicações a quem demonstrasse o menor vestígio de interesse. Victor ouvia calma e atentamente.
A mãe, por outro lado, incutia-lhe aos ouvidos o seu quinhão em matéria de humanidades. Em dia oportuno, ministrou ao filho uma verdadeira aula, na qual, com o auxílio de algumas notas previamente destacadas, falou acerca da distinção do pensamento moldado à leitura de autores clássicos. Pinçou Homero, Virgílio, Dante, contextualizando a importância de cada uma delas no modelo histórico ocidental, contrapondo-os aos poetas do oriente. Nesse ponto, por prudência temperada, dissertou sobre Bashô.
- "Filho... a folha dança antes de tocar o chão. Bash? escreveria um poema só para ela. Três linhas, talvez. Um haicai, simples como o silêncio — mas nele caberia o outono inteiro, a vida da árvore, o tempo que passa e não volta. No Japão, por exemplo, aprende-se a ouvir o que não é dito. A beleza lá não grita, ela sussurra. Não se impõe, se insinua. Bash? não quer nos mostrar o mundo — ele quer que vejamos por dentro dele. Quando ele diz: Velho lago — uma rã salta…som da água — ele não fala apenas da rã. Ele fala do instante. Do silêncio quebrado. Da eternidade que mora no momento que passa. Os poetas do Ocidente, meu filho, aprendem desde cedo a construir grandes castelos com palavras. Falam de amores grandiosos, tragédias universais, heróis que enfrentam os deuses. Eles narram, explicam, declaram. São filhos de Homero, de Virgílio, de Shakespeare. Nós… somos filhos do vento. A cultura oriental nos ensinou a viver com o impermanente. O ‘mono no aware’ — a beleza da transitoriedade — nos faz chorar não porque algo acaba, mas porque sabemos que ele é belo justamente porque acaba. A flor de cerejeira é linda porque não dura. Aqui, menos é mais. A forma curta do haicai é como uma cerimônia do chá: tudo é pensado, até o que se retira. Não há pressa. Não há excesso. No Ocidente, a poesia muitas vezes é como uma ópera; no Oriente, é como o som de um bambu ao vento. Ambos têm beleza. Mas a nossa… é mais feita de espaço do que de palavras. Por isso, Bash? caminhava a pé por aldeias, dormia sob a lua, escrevia com poucas sílabas, como quem desenha a alma da paisagem. Aprende com ele, meu filho. Aprende a ver poesia no que não chama atenção. Aprende que um raio de sol no chão pode ser tão vasto quanto uma epopeia".
Com essa base de educação, Victor crescia e se desenvolvia, cumprindo em tempo hábil as atividades que lhe eram oportunizadas, aproveitando cada instante experimentado com a consciência certa de que todos aqueles investimentos o conduziriam a um estado mental de possibilidades e aprimoramento, indo além dos hábitos e das consciências mais convencionais que, cedo ou tarde, acabam por se conformar, vivendo uma vida morna de prazeres e insignificâncias, desprovida de um sentido maior ante a complexidade das coisas. Aos finais de semana, sentava-se solitariamente à mesa onde se instalava o novo computador que lhe fora presenteado pelo pai, por meio do qual principiava a tecer algumas palavras em frases soltas que lhe viam ao pensamento. Em um dos textos, mais tarde descobertos pelo próprio pai, quando Victor, saindo às pressas, esquecera o IBM 486 ligado, Romualdo lera:
“Por um milhão de vezes, embora se questione, é preciso estar a sós consigo mesmo. O mundo não comporta tamanha convicção reflexa, repetidamente inquestionada, fonte de comportamentos idiotas que se reproduzem, expressos às ideias dessa farândula de ignorantes que me dizem pares na construção de algo maior. Meus colegas, asnos. Os professores, nem me fale, piores. É preciso que se baste. Os malditos, que se matem (V.S.N.)”.
Ao cabo da primeira leitura, um frio na espinha, uma mistura de medo e incompreensão. As palavras eram claras. Ao cabo da primeira, esquecendo plenamente todos os problemas intermitentes que lhe ocupavam o pensamento daquele dia, à visão turva, limpara os óculos, firmara-o com os dedos no apoio ao nariz. Tentando evitar, sentira a marcha cardíaca acelerar a circulação sanguínea que, àquela hora, costumava se acalmar.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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