Por Thiago Torres Canossa
Tarde amena de outono em um domingo qualquer, cumpridos os deveres comuns à doméstica rotina, no interior de um dos cômodos da casa envolta pelo frio crepuscular, a mulher buscava o controle remoto às mãos, sobre o qual pressionara o botão para desligar o televisor em alto volume, em cujo canal sintonizado reproduziam-se as frivolidades típicas do dia primeiro da semana. Lá fora, o vento balançava as árvores, derrubava impreterivelmente as secas folhas, conduzindo o canto triste dos pássaros enjaulados nas gaiolas do quintal, presentes de um finado avô ao neto ainda criança, há quinze ou vinte passados anos.
Sozinha naquela sala, Severiana, mulher de rijo porte em alvo corpo, precocemente envelhecido pelos desmandos da vida, aos cinquenta anos de idade, prendia os cabelos negros e lisos à cadência de quem não sabia ao certo se faria o que pensava. Sobre a pequena mesa ao lado do sofá, empunhara às enrugadas mãos o velho óculos de lentes aparentemente sujas por marcas de lágrimas ressequidas, sentara-se confortavelmente na poltrona e ao cabo de duas ou três respiradas, sacara do bolso uma carta escrita à lápis, em cujo envelope se inscrevia: “Não foi culpa minha”.
Aos últimos dias do outono de mil novecentos e oitenta e oito nascia Victor Selvian Neto, fruto repentino e inesperado do legítimo casamento entre Romualdo e Severiana, brasileiros natos de uma classe média em ascensão, glorificados pelos honestos esforços do casal de origem simples que comungava a vida por meio dos infindáveis suores desde a época em que se uniram. Àquela época, Romualdo, homem gordo e ao mesmo tempo forte, de mediana estatura e olhar sisudo, desempenhava função pública junto ao Ministério da Fazenda no cargo de Auditor Fiscal. Engenheiro de formação, além de um respeitável bigode, cultivado pelo esmero dos anos desde a juventude, empreendera amplos esforços ao cargo por força da afinidade com os números, o que de certa forma lhe facilitou o ingresso na instituição por meio de concurso público, que, dentre outros requisitos, exigia conhecimento técnico nas matérias de raciocínio lógicomatemático, contabilidade, auditoria, finanças públicas e matemática financeira.
No interstício de seus estudos, conhecera a atual esposa durante as aulas em um curso preparatório à carreira de auditor, a qual era responsável por ministrar o módulo de redação técnica em língua portuguesa moderna. À primeira vista, Romualdo encantara-se por aquela mulher de alta estatura, alva pele e um verde olhar que se abrilhantava entre as pausas de uma locução suave à voz aveludada, que em seus ouvidos soava como uma canção, apontando-lhes com as brancas vivas mãos um exemplo à lousa dos elementos textuais mínimos de coerência e coesão. Em suas exposições, Severiana ia além da técnica argumentativa textual. Leitora ávida, formada em literatura, pós-graduada em linguística e semiótica, Severiana acreditava no poder transformador da expressão. Sabia como a própria vida que as letras sobre as frases devidamente conjugadas dignificavam o pensamento e a consequente comunicação, a si, um instrumento de luta à paz por meio da boa interpretação. Em tempos anteriores, inclusive, besuntados pelas suas aulas, que, de fato, eram quase profecias, entre seus alunos alguns abandonaram o curso no intento de se tornarem escritores, casos de sucesso, como o poeta Ícaro Valverde, o cronista Damião Coutinho e a romancista Zuleica Bastos, todos reconhecidamente gratos aos raros ensinamentos da professora.
Victor Selvian Neto, nome escolhido em homenagem ao pai de Romualdo, no mesmo dia em que vinha ao mundo, fora submetido a testes médicos preliminares, por força da própria legislação. Os pais, preocupados, visto que a gravidez não fora premeditada, aguardavam os resultados que em instantes lhes chegaria sob a face apreensiva, em um envelope entregue pelas trêmulas mãos da enfermeira, escrito informalmente, no qual se lia:
"Victor nasceu sob parâmetros clínicos considerados normais. O parto foi tranquilo. Seus sinais vitais, estáveis. E, no entanto, algo não parecia exatamente... ali.
O choro veio, sim, mas tardio e estranho — um som opaco, desacompanhado de urgência ou desespero, como se não buscasse consolo nem resposta. Quando repousado no colo da mãe, Victor não buscou o seio. Seus olhos, vagos, não encontraram o rosto materno. Havia, ali, uma ausência que se impunha.
Ao longo das primeiras horas, notei episódios discretos de espasmos nas mãos. Não era tremor. Era uma espécie de comando — involuntário, mas específico. Os dedos medianos, em especial, enrijeciam-se isoladamente, como se sinalizassem algo que ainda não sabíamos nomear.
Mais inquietante, contudo, foram os breves surtos de expressão emocional. Uma súbita raiva ruborizava seu rosto, fazia tremer sua mandíbula, franzirlhe a testa. Era como se algo dentro dele gritasse, embora sem som. E tudo isso… com menos de uma hora de vida.
Esses sinais não permitem, por ora, qualquer diagnóstico. Mas tampouco podem ser ignorados. Aconselho acompanhamento sensível, contínuo. O tempo - sempre ele - será o verdadeiro avaliador do que se passa sob essa pele tão nova.
Victor está vivo, forte. Mas parece estar, desde já, lutando contra uma forma de estar no mundo que ainda não compreendemos".
A assinatura, ao final, era firme. Como se sustentasse - com pena e firmeza- a fina linha entre o mistério e o cuidado. A médica responsável pelo parto, doutora Lídia Amaral, não era mulher de alarmismos. Mas também não era do tipo que fingia não ver o que seus olhos lhe gritavam.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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