Opinião

O cachorro da porta do céu

"Nem ele sabe explicar como tudo isso aconteceu, mas é como se todo o conhecimento que ele adquirira ao longo do tempo se encaixasse e ele entendesse que a vida é simples"
Da Redação
16/04/2025 às 15h10
Foto: Divulgação Foto: Divulgação

Por Jean Oliveira

 

Samuel estava com a cabeça cheia. Tinha problemas reais e muitos outros inventados. Eram como pássaros teimosos em praça na frente da igreja. Eles ciscavam o chão de sua mente, faziam pequenos vôos pelos pensamentos e pousavam novamente. Idas e vindas. Sempre as mesmas lembranças e certezas a lhe rodear.

 

Para tentar aplacar o desespero, saiu a andar pela cidade. Ele, com seus 40 anos, tinha passado a vida estudando. Casou, teve filhos, leu os melhores livros. Mas algo em tudo aquilo não se encaixava. Sua esposa dizia que ele pensava demais, por isso nunca tinha paz.

 

Ele andou por vinte minutos, por diversas ruas. Em uma praça quase deserta, sentou-se sob uma rara sombra. Ficou ali por alguns instantes vendo os pássaros da sua mente subindo, descendo, ciscando os sentimentos, bagunçando com seu juízo.

 

A revoada fora quebrada por um riso profundo. Brotou dentro dele, como um soluço de vida. E Samuel ria desesperadamente. É isso que chamam de epifania. Quando uma verdade, ou a verdade, vem como uma percepção intuitiva. Ele ria copiosamente. E todos os pássaros de sua mente voaram com o barulho de seu riso.

 

As idéias voaram longe. Ele se livrou de todo o peso e culpa. Nem ele sabe explicar como tudo isso aconteceu, mas é como se todo o conhecimento que ele adquirira ao longo do tempo se encaixasse e ele entendesse que a vida é simples. Ela é o que é, sem teorias. Aliás, entendeu que nenhuma teoria é suficiente para dar conta da complexidade da vida. E que nem adianta pensar tanto, as coisas são aleatórias e quando a morte vir, pouco importa se você entendeu ou não tudo o que se passou. Vai ser levado para um lugar de onde ninguém retornou.

 

Samuel estava com a cabeça vazia e o coração cheio de vida. E no caminho de volta para casa, pensou na morte. Riu do fato inesperado e inevitável que é morrer. Refletiu sobre céu e inferno. Teve medo. Pavor de ir pro céu das revistas, com gramados eternos e bichos felizes, e desespero em cogitar o inferno.

 

Mas quando estava bem perto de sua casa, já tinha se convencido de que fora um bom homem. Que teria grandes chance de ir para o lugar bom. E pensou na paz do lugar, no sol constante, nas noites serenas. Nos animais pastando livremente e os jornais chegando no outro dia apenas com notícias positivas.

 

Refletiu bastante e não teve dúvida. Espantou com um grande grito um pequeno cachorro que passava pela rua. Ele, que estava na porta do céu, pediu vistas no processo de admissão no paraíso. Precisava de mais tempo para pensar.


Jean Oliveira é jornalista, turismólogo e estudante de psicologia

 

** Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação

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