Opinião

Indiferença

"As coisas são o que são, e pronto. Basta ao redor olhar, e nada mais justo do que nisso deixar de apostar"
Da Redação
03/03/2025 às 17h59
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Thiago T. Canossa

 

25/02/25. À tarde deste dia, sentado ao campo, o silêncio reina. Longe das vozes insurgentes que gritam por prazer em farta comida, vozes sedentas pelo ócio das bebidas fermentadas às falsas alegrias, integralmente aptas às palestras fúteis, alimentadas por palavras indomadas que revigoram os anseios fracos, que se lambuzam e se entorpecem em tão pobre companhia. 

 

Um dia raro. Longe dos ratos e das fraudes comezinhas, das vontades que buscam um sentido amplamente ignorado, dos desejos sujos e velados, do som dos carros, do progresso intermitente, da fumaça aos roncos automotores que entorpecem a mente e incapacitam a mais profunda vontade de estar só. 

 

Por um instante, longe da guerra, distante da quimera que nos ata aos seus mais embaraçados nós, longe da honra e das sequelas, afiançadas pela desídia humana em se conquistar o pó. À distância, o som dos pássaros que desconheço, cada qual em sua instintiva obrigação, cumprindo o dever de existir sem prévia comunicação, sob a ausência dos passos que perseguem e os olhares que julgam e condenam com malhetes de uma sedução sem dó.

 

Escrevo aos pés descalços. Jamais por outra ambição, que não a de oferecer o despejar de sentimentos vivos ao prato de um faminto ganancioso por um pão. O mal do escritor, fonte-mor de inspiração, é a felicidade na decepção. Acepção do belo infortúnio. Só escreve quem não se basta, escreve quem se desbasta, se desgasta e se descalça pra conversar a sós ao não.

 

Um sorvo ao café recém-coado. Imóvel, a lufada se aproxima, anunciando mais uma chuva de verão. O vento límpido traz nuvens carregadas de algodão, sopra as folhas de uma verde relva e me dão fieis motivos pra que me assente mais ao chão. Fecho os olhos pra buscar motivos que me mantenham vivo neste mundo rijo e malsão. 

 

A tempo, escrever se torna cada vez mais difícil. Procuro a harmonia que me é tomada aos dias, nos quais me dizem ser José, quando apenas quero ser João. Na mente, outras vozes. Outros timbres tentam me convencer de que o sumo de toda existência reside nas posses ou nas falcatruas que as endosse. 

 

Alegrias compradas com o suor do tempo, medida-mor da vida que me nego a utilizar em vão. Dispenso as posses. O tempo é riqueza ao pensamento. Estou bem assim. Não me convenço e, por tal razão, me distancio sem consenso. Nas conversas cotidianas das relações julgadas imprescindíveis, um mal estar imenso me dispende a energia do silêncio. 

 

Pessoas que almejam me contar as novidades tomam-me o momento e o preciosismo da mais simplória reflexão. Nas conversas sempre desinteressantes, roubam-me as ideias por falta do que pensar, ignoram os interlocutores o mal que fazem ao me questionar os ânimos desimportantes que em momento algum me dispus a lhes perguntar.

 

Talvez vá lá, não seja normal. O mundo quer alguém com quer sorrir, amar e compartilhar. Eu só quero esse silêncio e um céu imenso por onde caminhar.

 

A saúde me abateu por esses dias. Quase um mês de agonia, às dores que me impediam inclusive de respirar. Nesse estado, não há coisas a se aspirar. Apenas os cuidados e a ânsia em esperar. 

 

No claustro das paredes, sem qualquer inspiração, lutei pelos motivos a manter-me vivo e em algo que não vejo acreditar. A vida sem saúde é mero instinto, obrigando-nos a insistir em não deixar antecipar o inevitável extinto. Nesse estado, não há animus suficiente nem nada a se contemplar. 

 

Não sou crente e de nada sou credor. Não quero crer na dor de algo maior que não se me apresente convenientemente. As coisas são o que são, e pronto. Basta ao redor olhar, e nada mais justo do que nisso deixar de apostar.

 

A água corre porque a isso fora estabelecida. Há milênios, o corpo vive, cresce e morre. Dor mesmo é questionar. Não há nada nem a quem se lhe implore. Não tem jeito, não há saída sem se afogar. 

 

Viver é uma intensa guerra em busca de uma harmonia para a mente que se queira dominar. Para isso, existe o silêncio, instrumento poderoso a se fazer presente, esquecendo o passado e o futuro, tempos criados pelo Ocidente a nomear o que não existe verdadeiramente. 

 

Abro os olhos e o céu se inflama, pronto a jorrar em água dura cada lágrima de suor líquido, excrementos ínfimos que se acumulam nas andanças de um esquisito. Sei que a terra não é plana. O vento se fortalece enquanto os trovões impõem-me o medo. Insisto em não pensar em nada, enquanto a luz do sol se apaga e a chuva corta como adaga. 

 

As vozes silenciam. Os pássaros se distanciam rumo ao abrigo duma outra desconhecida plaga. Estou sozinho, mas bem acompanhado. Assusta-me a queda ao clarão de um forte raio. Esqueço das obrigações mesquinhas, dos bens ditos raros e de todas as minhas tralhas, guardadas ao armário. 

 

Novas tribulações à mente. Erguer a tenda antes que algo me arrebente. Agora o tempo é tudo. Agora é o tempo turvo. Agora o tempo é curto. Nada mais importa. A vida é isso, sobreviventemente, até que se lhe abra a última porta, e tudo acabe em silêncio, indefinidamente.

 

Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito

 

**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.

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