Por Thiago T. Canossa
Doze horas de plantão policial diurno. Era a informação que constava na escala da Delegacia de Polícia onde exercia meu ofício. Caixa alta, em negrito, o meu nome inscrito: CONVOCADO.
Naquele dia, ausente das minhas funções habituais em um cartório criminal especializado, principio o plantão às sete, com vigência até as sete horas noturnas do mesmo dia, ao pôr-do-sol expediente. Sob uma chuva torrencial, a manhã trazia ares de uma aparente tranquilidade, sem a ânsia por graves incidentes. Esse estado de espírito durou bem pouco, posto que, inesperadamente, ao balcão de atendimento, começavam a chegar os contribuintes, cada qual à rubra face, retirando a senha e aguardando atendimento no átrio da unidade, não sei se pacientemente.
Ao costume legal das atribuições previamente instituídas ao cargo de escriturário, cumprimento e os escuto calmamente, um a um, de forma a captar o ocorrido, formalizando o mais amplo e verossímil possível a narrativa dos fatos que lhes orientavam a procura pela instituição policial. A par de cada uma das informações relatadas, uma gama de problemas pessoais, de fundo majoritariamente emocionais, inundam os meus pensamentos. Palavras em minha cabeça prontas à composição de uma velha reflexão se afogam no mar das emoções alheias, regadas aos prantos por um desespero aparentemente simplório, tal qual os grandes problemas sem saída.
Ante cada relato, respiro, questiono, mantenho a calma e repito:
- Responda apenas ao que eu lhe perguntar. Concentrar é preciso, nisso aqui não posso errar.
O lento relato se afogava em lágrimas de desespero. Pedia calma àquela alma.
Pra meu alívio, o choro se interrompe. Teclado à mão, escrevo à linha: “Presente neste Plantão Policial a senhora Virgulina, onde informa suposto crime de dano de que teria seu filho Álvaro sido vítima, à luz do argumento de que ele, hoje com dez anos de idade, teria tido o pneu de sua bicicleta danificada por um objeto perfurante desconhecido, nas imediações do Instituto Educacional Veredas do Saber, pelo suposto Benjamin Duarte, seu colega de escola, filho de Isadora, sua vizinha, hoje ex-amiga. Alega ele ter sido vítima do crime de dano, com previsão expressa no artigo 163, caput, do diploma criminal brasileiro”.
À inserção de tais informações, uma nova interpelação. Cesso o raciocínio que compõe a narrativa. Escuto novamente.
- Eu exijo a prisão de Benjamin.
A muito custo, tentei lhe explicar que crianças não eram submetidas à pena de prisão no ordenamento jurídico brasileiro e que a questão, no máximo, poderia ser resolvida no âmbito do direito civil. Obviamente, aquelas palavras não foram bem essas, mas adequadamente adornadas pela didática necessária à compreensão daquela senhora de trejeitos simples.
Orientei-lhe que consultasse um advogado para a melhor solução do pleito. Inconformada, me xingou de certos nomes poucos claros e saiu gritando à porta, reclamando do meu feito.
Sob os raios da tempestade que lá fora se avolumava, a água teimava em não cessar de cair. O som daquele jorro intermitente se confundia com as recentes lágrimas daquela mulher, sedenta por reparos, inconformada, qual insistia, a seu modo e linguagem, em comunicar o peso da injustiça oriunda de tais fatos. Àquele tempo, uma voz estridente ecoava no corredor ao lado, questionando um desconhecido interlocutor:
- Quem é o escrivão?
Sem mesmo esperar pela resposta, dirigiu-se à sala de flagrantes, onde me encontrava, e pedia por algo. Uma certidão, cópia ou impressão. Não me lembro a certo o quê, mas o suficiente para interromper o fluxo dos pensamentos necessários ao novo atendimento em curso. Respirei. Coloquei-me à disposição.
Palavras diversas e intermitentes corriam-me à mente, clamando que as integrasse em uma nova composição. Nessas horas, a cabeça pesa e o corpo cansa. Difícil adequar o escrivão ao escritor. Lembrei-me de uma frase pertinente ao ocaso, criada pelo meu psiquiatra, mas adequada à situação: “Não sou chefe de ninguém, tampouco de palavras selvagens, ansiosas para serem domadas e integradas à unidade de um sentido civilizador”. Era uma espécie de mantra, parte de um tratamento para distúrbios de poeta. Nesse caso, além das medicações, eram-me indicados estados de pensamento para distúrbios de criação.
Prestei mais dois ou três atendimentos. Quem sabe quatro, cinco, seis ou dez, ininterruptamente. A cabeça fervilhava. Não parei ao menos para uma água. O contribuinte paga em dia seus impostos, não ouso deixar que me esperem ou que se lhes atrase um adequado suporte de atendimento.
Às 10h, deixei a sala. Finalmente um copo d’água, um café e uma bolacha. Ao fundo, novamente escutava: “Quem é o escrivão?”. O coração acelerava. Não tinha paz. Enquanto isso, o dia mal começara.
O telefone tocava. Atendo. Victor Sombra, policial militar, comunicava-me uma morte suspeita em determinado local, solicitando perícia técnica. À falta de habituação ou manejo naquela rotina de plantonista, o desespero de um ignorante temporário frente às atuações corriqueiras ao dia convocado. Anotei as informações com cautela e pedi que me retornasse em breve. Procurei pelo delegado na sala ao lado para lhe prestar a devida informação. Não o encontrei. Ele é o responsável pelas decisões aos casos que nos chegavam. Diabos. E agora? Ninguém na recepção. Uma farândula desordenada de pessoas se achegavam e se acoitavam no balcão.
Respirei. Chamei o próximo.
Novo atendimento. Não conseguia me concentrar, tinha ainda que resolver a morte suspeita. O delegado se ausentara.
Lá fora, novamente, a voz fantasmagórica: “Quem é o escrivão?”.
Redigia um novo caso de difamação. A vítima suposta insistia na exata descrição dos fatos que me narrava. Falava, falava e resmungava. Respirei. Tive que interrompê-lo: “Senhor, a técnica jurídica aconselha que a narrativa dos fatos se atenha estritamente à conduta típica”. Não sei se entendeu, mas serviu para que me desse atenção.
À mente, as palavras indomadas voltavam a me interromper o fluxo dos pensamentos, dizendo serem aptas a um novo poema, qual jamais conseguiria escrever. Eis mais uma problemática do escritor: não há salvação aos pensamentos ausentes da solidão.
Sombra liga novamente: “E aí?”
A chuva parou. O delegado chegou: “Tudo tranquilo por aqui”? A honestidade tem os seus momentos. Disse-lhe que sim.
- Dispensa a perícia, o local não está preservado.
Sombra insistiu. Ante a decisão, enfim, desligou.
“Quem é o escrivão”? [ao fundo].
O investigador me interrompe e informa que há pessoas aguardando atendimento. Era cedo. Na minha luta diária e incessante contra as asas do tempo, naquele instante, queria mais é que ele rasgasse todos os ventos e me trouxesse o fim daquele dia. Estava ciente de que o pôr-do-sol eu não assistiria.
Já me cansava. Ainda não me recompunha da recém-passada rotina. Tinha que me alinhar e respirar para lidar com as palavras corriqueiras e inflamas, insistentes daquele dia. Eram problemas, manias, dinheiro, fraude, boletim de ocorrência, papel, advogado, crime, morte, vítima, autor, materialidade, perícia, testemunha, código penal, armas, sistema, diarreia, ânsia e arritmia.
Não é fácil a rotina policial. A glória de uma aprovação pela conquista de um emprego estável se desmancha no quadro operacional dos casos com pouca solução; afinal: “Quem é o escrivão?”
Às 16h, o balcão vazio. Não almocei. Respirei, outro gole d’água, um café e uma bolacha.
Um novo caso se aproximava. Um sujeito embriagado fora preso em flagrante delito, por violação às normas do estatuto de trânsito. Rapidamente, redigia, lavrava, e as horas não passavam. Ao menos, a tempo, o indivíduo me fora apresentado. Respirei. Logo menos, mais um caso liquidado.
A formalização dos autos de uma prisão em flagrante exige ampla concentração por parte do escrivão, funcionário responsável pela minuciosa descrição da conduta infracional e de suas circunstâncias. Além do tempo exigido ao ato, não aguentava mais as palavras que sussurravam em meus ouvidos. Em pouco tempo, estaria em casa.
Dia comprido. Esforcei-me mais nos últimos minutos que me eram devidos.
Em pouco tempo estaria em casa.
À presença de um carcereiro, um policial e o delegado, informei ao acusado todos os direitos que lhe eram devidos, de forma que não lhe restasse dúvida qualquer. Assim todos ficariam satisfeitos, e o justo, perfeitamente interpretado, para o bem maior do cidadão e do Estado.
- Alguma dúvida sobre o que eu lhe expus e dos fatos que lhe sopesam, senhor João?
À voz surrada, em tom cambaleante, levantou-se ao cheiro duma ebriez recente, e, entre os dentes, o senão:
- Uma só. Sou inocente. Quem é o escrivão?.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação