Por Thiago T. Canossa
Era final de noite quente numa quarta-feira qualquer. Transitava a carro pela avenida Brasília, quando avistei um posto de gasolina e ali estacionei. Não era caso de abastecimento, recarga de pneus ou qualquer outro assunto direcionado à manutenção de veículos automotores.
Adentrei à loja de conveniência daquele posto Ipiranga, instalado em uma avenida de alta rotatividade e movimentação, local estratégico às vendas, de ingresso e saída da cidade de Araçatuba, município instalado no longínquo interior do estado de são Paulo, onde resido. Ali, uma variedade de produtos em categorias diversas: refrigerantes, sucos, água, salgadinhos embalados em sacos plásticos, cervejas das mais variadas marcas e composições, isqueiros, doce, cigarros etc. O ar era fresco, aconchegante e condicionado. Lugar perfeito para uma pausa, um café, e quem sabe, uma reflexão apta a se tornar escrita.
Dirigi-me ao guichê. Nada daquilo me interessava. Solicitei atendimento à moça atrás do balcão. Era uma mulher de meia-idade, entre os seus vinte e pouco ou trinta anos, a contar pela aparência saudável, de postura aos atos moderados, alvíssima pele e olhos verdes claros, que olhavam por intermédio de óculos em lentes grossas e grandes, limpo e quadrado, destacando o brilho de um olhar atento ao pedido de um desconhecido cliente.
Sabe-se lá quantos consumidores passavam por ali diariamente, o tipo, a qualidade das pessoas que por ela eram atendidos. Impossível mensurar. Pessoas das mais variadas estirpes, idades, modos, preferências, éticas, falsidades, amores e saudades. Eu, que lido diariamente com o público, talvez possa vislumbrar tamanhas gentilezas, afagos, cantadas e grosserias recebidas nas duras horas de um ofício que se faz em pé. Faz parte. Ao menos ela detém a vaga num emprego com o qual pode arcar com suas despesas básicas em prol de si própria ou de sua família.
- Boa noite.
- Boa noite.
- Veja-me um Halls, sabor maçã verde, por gentileza.
- Aqui está. São três reais e noventa e nove centavos.
- Pagarei no cartão de débito.
- Pois não.
- Obrigado.
- Obrigada. Tenha uma ótima noite.
A voz era clara, limpa e o ritmo virtuosamente cadenciado, como quem canta sem querer cantar, encantando até o mais triste pelo vigor do verdoso olhar. Abri o produto, dropei ao lábio uma bala, voltei ao carro. Ao primeiro sorvo daquela bala de maçã-verde, um pensamento veio-me à mente, reflexão mister de se lhes contar.
A moça, cujo nome me era desconhecido, não me desejou meramente uma boa noite. Desejou-me, mais que isso, uma ótima noite. Sei que ao leitor isso pode parecer simplório e despretensioso. Talvez a mim também o fosse em um passado distante, mas não agora, próximo aos meus trinta e sete anos de idade, mais maduro e mais atento, sedento pela compreensão das coisas aparentemente pequenas.
A menção dos fatos que o faço em escrito é incapaz de traduzir a grandeza daquela interlocução, o que é natural, uma vez que a linguagem meramente escrita carece de outros elementos de significação para uma integral compreensão do momento vivenciado. “Tenha uma ótima noite” . Mensagem emanada em limpa voz, harmonicamente adornada, afiançada pelo olhar sincero de quem realmente acredita no que diz e genuinamente o faz.
“Tenha uma ótima noite”.
Diários e constantes são os bons dias, boas tardes e boas noites. A cada encontro, seja falso, sincero, conveniente ou obrigatório, detemo-nos à obrigação protocolar de cumprimento aos nossos pares. Ainda que não se queira, é preciso muito esforço e dedicação de espírito para não cumprimentar. São mensagens sem fundo, embora demonstrem empatia, ausente qualquer intenção de o desejar.
Isso, porém, não me ocorreu naquele dia. Diferente de qualquer outro em minha vida, detive-me à mensagem. Talvez fosse a última, naquela qualidade, de quem fielmente intenta desejar.
Fui embora, amparado nessa reflexão que até o presente momento me persegue. De fato, tive uma ótima noite, conforme o desejado. O poder da mensagem concretiza, invade o corpo e revigora, alimenta a energia fisiológica, ilumina o sangue que corre em cada artéria, faz com que a mente torne o ato em memória.
Aqui descrevo-a, para que um dia, quem sabe, disso tudo possa dar ciência à atendente, no formato de um livro, ou uma crônica publicada ao rodapé de um veículo de comunicação minimamente decente. Talvez ela não o leia, talvez não esteja mais lá, tenha se mudado, tenha sido morta e esse escrito perdure eternamente a quem possa lê-lo e uma ótima noite possa humanamente a alguém desejar.
Tenha uma ótima noite.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
**Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião deste veículo de comunicação.