Por Thiago T. Canossa
Fui visitar meu tio-avô na cidade de Macaubal, onde sempre sou recebido com muita deferência e carinho, talvez pelo respeito a que lhe devo à contribuição dos exemplos e ensinamentos muitas vezes tácitos. Elias Cevada. Homem vivido, instruído pela árdua vivência nos dias sob o sol, aos parcos, porém honestos rendimentos oriundos da vida sofrida em busca das oportunidades caras à manutenção da sobrevivência familiar.
Pequeno município situado no longínquo interior do Estado de São Paulo, a muitos quilômetros distantes da capital, Macaubal teve sua pedra fundamental assentada no dia 2 de maio de mil novecentos e vinte e quatro, fundada pelos portugueses Manoel Camilo de Figueiredo, João de Freitas Caíres, pelos brasileiros Tomaz Teixeira de Sousa e Narciso Alves da Silveira, onde estabeleceram família em virtude das terras férteis do Município aos arredores, denominado Monte Aprazível.
Cidade pacata e de povo trabalhador, Macaubal teve sua emancipação política em vinte e quatro de dezembro de mil novecentos e quarenta e oito, onde nasceu o primeiro fruto de meus avós, José Carlos Canossa, meu pai, que por pouco tempo ali ficou, até se mudar com os pais para a cidade de Auriflama.
Os tios, irmãos da minha avó Maria, Elias dentre eles, ali continuam a viver felizes e pacatamente, lugar para onde me dirijo de quando em quando, a fim de encontrá
À noite daquele dia confraternizamos com um bom churrasco, de cujo aroma ainda posso comemorar, à companhia dos demais familiares, gente toda humilde, de coração fraterno e anfitrião. Em dado momento, viera-me o convite para que estendesse a estadia ao fim do dia seguinte, a fim de que pudesse conhecer um sítio nos arredores, sob os cuidados do arrendatário respectivo, Dinei, esposo de uma das netas do tio Elias, carinhosamente tratado pela alcunha “Guim”, nomenclatura social de origem que me é desconhecida. Demonstrei-lhes a devida gratidão e me disseram que, em meu nome, lá matariam um porco para o almoço.
Embora agraciado e agradecido, recebi aquele convite com uma espécie de alegria adornada com frustração: a vida de um animal seria ceifada à minha causa, sem que disso ele tivesse a menor consciência ou prévia intimação.
Era fim de ano, às vésperas do reveillon, termo de origem francesa diretamente designada pelo ato de “despertar” ao novo ciclo vindouro, tempo de mudança e de reflexão. A confraternização seguiu até o seu termo, por volta das onze horas noturnas, quando nos despedimos e deixamos o local.
Por inconveniência, fraqueza ou medo de desagradar o carinho do convite, aceitei-o de bom grado e fé, porém imensamente preocupado. Eu que nunca matei nada, ainda que indiretamente, agora mataria, aquele animal qual eu desconhecia, mal sabia que a poucas horas, sangraria para alimentar desconhecidos por uma causa pela qual eu mesmo não valia.
A noite era longa, o sono não vinha. Quando muito, sonhava com o animal preso às patas por cima, urrando pela vida, jorrando sangue vermelho em um local onde vivia com a sua família. O que veriam seus filhos, esposa, se o tivesse, e todos os seres vivos que ali estariam? Qual não seria a tristeza daquela morte perante o universo e as leis que o regiam?
Não dormia.
Não sou vegetariano. Sou o hipócrita que da carne se alimenta e não compadece da fauna viva que é morta pra alimentar de sangue os sedentos.
Alta madruga. O que faria? Não conhecia o sítio para onde iria, tampouco o caminho pelo qual ali em breve me levaria. Cogitei. Talvez pudesse sair, descobrir o local, avisar o suíno que fugisse ao fim iminente de uma faca afiada, apta a cortar até os dentes, manejada por uma frieza quase budista de quem entende que isso tudo é breve e impermanente. Levantei. Fui à varanda, onde pensei. Porém, nada mais era possível fazer. Era questão de horas. Aconteceria. Tudo por fraqueza minha, em não poder recusar, ao menos rogar pela vida do pobre animal que seria injustiçado pela fome dos homens, ou talvez por uma simples espécie de trato cultural.
Pensei em ir embora. Assim o ato não se consumaria, uma vez que não há morte precoce sem uma causa que a endosse ou sem o aceite do líder de uma confraria. Eu era a causa daquilo tudo. Não merecia. O porco muito menos, não me devia nada e eu nada lhe devia.
Já acordado, tomei a firmeza de aceitar o destino daquele pobre desvalido.
Fomos ao sítio. Andei de trator, conheci as estórias dos antepassados que ali fizeram-se vivos um dia. Senti no rosto a lufada dos prados, respirando ao silêncio de imensa harmonia. Os pássaros cantavam, a natureza muda conduzia o tempo a seu ritmo e poesia.
Não vi o ato. Orei em silêncio por aquela alma que há pouco se ira.
No almoço, o porco era iguaria. Olhei à carne na panela, tentando reconstituir as feições do animal enquanto vivo, seus sentidos nas cativas alegrias, a tristeza desconhecida na rotina inconsciente daquilo que vive, e tão somente vive, sem querer, sem poder saber que há Justiça e que tudo se acabaria.
A culpa é minha.
Thiago Torres Canossa é servidor público estadual graduado em Letras pela Mackenzie, em São Paulo, e em Direito
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