“Estou muito bem, sim! Não me procure mais!”, digita relutantemente a adolescente ao tomar um fora do namorado pelo whatsapp. “Nossa, adorei essa blusa! Minha cara!”, exagera tom a aniversariante, com uma cara de pouco amigos. “Uau, sua moqueca ficou uma delícia!”, ironiza o conviva ao engolir de uma só vez uma colherada da iguaria, imediatamente engolfada com um gole de água gelada. “Foi muito difícil tomar essa decisão, mas pedi demissão do meu emprego”, logra uma postagem nas redes sociais, quando se trata, aliás, de uma demissão sumária.
Todos os dias dizemos ou ouvimos essas narrativas episódicas cujo teor, muitas vezes auspicioso, remete-se ao excesso de positividade, como apontado por Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano, em seu livro “Sociedade do Cansaço”. A impossibilidade de realizar diferentes, novas e ressignificadas atividades é o efeito funesto da abundância desse universo cor de rosa, onde tudo, a rigor, está bem.
À primeira vista, somente a Barbie, principalmente nos dias de hoje com o estrondoso sucesso do filme que arrebanha fãs adultos, vive nessa inefável ambiência faz-de-conta: rica, linda, escultural e inteligente. Além de um namorado para lá de maravilhoso, está sempre na moda, rodeada por amigos descolados. Tudo isso, claro, até a página 2, quando a ilusão se esvanece.
A ver pelas contingências das frases supracitadas, é notório que os sentimentos reais que atravessam esses enunciados são exatamente o oposto do verbalizado. Apreende-se, assim, que talvez não estejamos preparados para dizer o que verdadeiramente sentimos, tampouco ouvir o que outros sentem. Medo, vergonha, insegurança, constrangimento, soberba e, às vezes, até covardia embasam as nossas diárias balelas.
Certamente, como assevera Nietzche (1844–1900), filósofo alemão, “a mentira é uma necessidade para que possamos viver e superar as dificuldades apresentadas pela realidade”. Contudo, a considerar as divergências, os embates e as ideias opostas, que poderiam surgir a partir da manifestação dos nossos reais sentimentos, como potencializadores constituintes de ressignificação de modos de vida, perdemos muitas oportunidades de criar o inédito e de repensar os nossos atos ao ser conivente com o nosso interlocutor e/ou com a conjuntura.
Por se tratar de um amigo, um membro da família, ou ainda alguém numa escala hierárquica mais alta que a nossa, preferimos o acordo, ou o silêncio, para evitar um candente vespeiro, pois, decerto, não saberemos lidar com as consequências do nosso questionamento. Muitos de nós compreendemos o “não” e o “contratempo” como algo absolutamente destrutivo.
No entanto, algumas correntes filosóficas discordam dessa nossa postura normalmente condescendente. No que tange aos desacordos, Maquiavel (1469 – 1527), por exemplo, filósofo de origem florentina do Renascimento, orienta-nos que “em um conflito, aquele que não é amigo te solicitará a neutralidade, enquanto aquele que é seu verdadeiro amigo te solicitará que tomes posição abertamente de armas nas mãos”.
Essa conivência discursiva, pautada em ornamentos retóricos com vistas ao mero e lisonjeiro contentamento para com quem nos ouve, vai na contramão da parresia, ou seja, a coragem de dizer a verdade. Mais particularmente, do grego “PARRHESIA”, a parresia está relacionada a “falar com sinceridade, franqueza”, visto que é constituída por “PAN”, “todos”, mais “RHESIS”, “fala, declaração”.
Desse jeito, o parresiasta, aquele que fala francamente com clareza pontiaguda e, amiúde, ferina, posiciona-se não apenas como elucubração ou um mero falar para agradar, mas como prática de vida. Infelizmente, parece que a parresia não tem espaço na contemporaneidade, principalmente, nas relações tóxicas e superficiais.
Como o poder, a conivência, o autoritarismo, o silenciamento, o dogma e a homogeneização execram o embate e a indagação, a parresia é, então, emudecida com o fim de não ser desvelado aquilo que já esteja petreamente posto. Regularmente, concebemos a discordância como uma afronta puramente pessoal.
Foucault (1926–1984), filósofo francês que costumeiramente traz à baila as palavras ocultadas, as vozes silenciadas, o poder opressor e os sentidos deturpados, resgata o mencionado conceito grego com o propósito de imbricar as nossas ações cotidianas na veracidade para construir uma maneira de viver verdadeira.
A coragem, vigor da parresia, de proferir a verdade, indubitavelmente, não está relacionada ao convencimento ou a alguma lição de moral, mas trata-se de oportunizar circunstâncias, tanto para quem fala como para quem ouve, de reflexão sobre os fenômenos que, muitas vezes encobertos, ocorrem de forma automática, viciada e cega, sem horizontes de transformações, à franja do marasmo e da estagnação.
Inobstante as possíveis mudanças, ao dizer o que de fato sentimos, ou ouvir o que os outros sentem, obviamente corremos o risco de ocasionar mercuriais discussões, brigas, rancor, irritação e, muitas vezes, rompimento. Como explica Foucault no magnânimo livro “A Coragem da Verdade”: o sujeito, ao dizer essa verdade que marca como sendo sua opinião, seu pensamento e sua crença, tem de assumir certo risco que diz respeito à própria relação que ele tem com a pessoa a quem se dirige. Para que haja parresia é preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfrente ao risco de ferir o outro, de deixá-lo com raiva e de suscitar de sua parte algumas condutas repensadas”.
Embora haja situações sociais que preferimos não ser parresiastas para evitar desavenças entre cônjuges, família, chefes, amigos e, claro, manter o mínimo de convivência social, dado que a franqueza pura a todo tempo inviabilizaria a nossa interação com o mundo, vale ressaltar que a lisonja, ou seja, o elogio e a adulação exagerados, pode ser inimiga da franqueza.
Destarte, é patente ficar à espreita de quem nos paparica, concorda e aceita tudo o que fazemos e dizemos o tempo todo, uma vez que “esse pseudo amigo” pode impedir de que conheçamos outras possibilidades de agir, ser e pensar. No mais, como tendemos a terceirizar as causas dos nossos deslizes, conduta ratificada por Sartre (1905-1980), filósofo francês, ou seja, “o inferno são os outros”, estar atentos ao que os outros de fato pensam sobre as nossas atitudes pode ser uma brecha para visualizar possibilidades de ir além do que ingenuamente achamos que podemos fazer.
Ainda que seja meramente uma fantasia, Barbie nos ensina muito em relação à potência dos conflitos quando, ao deixar a Barbielândia por não ser tão perfeita e estereotipada como se acreditava (spoiler: celulite!), embrenha-se na realidade nua e crua. Incrédula, depara-se com os descompassos do novo cenário em relação à sua outrora terra natal, dantes imersa num conto de fadas.
No nosso contexto, vivemos com padrões estéticos inalcançáveis, assédio sexual, objetificação do corpo feminino, bullying, depressão, patriarcado estrutural, tristeza, inevitabilidade da finitude humana, frustração, ansiedade, desigualdade de gênero, dentre outras mazelas. A despeito dos confrontos e dos desencontros internos da boneca, derivados dos inexoráveis fatos da nossa existência, as contrariedades a tornam consciente do mundo real imperfeito que enfrentamos diariamente.
Mesmo assim, por mais lúgubre que seja, podemos ter vivências incríveis como consequência, por exemplo, da nossa criatividade, das reconsiderações dos nossos pensamentos e da constante vigilância para não fossilizarmos o nosso existir e, por conseguinte, redesenharmos a nossa cartografia nesta efêmera passagem por estas bandas de cá.